Discurso do presidente russo celebra vitória na Segunda Guerra, mas os esforços foram de pessoas comuns, não da URSS. Via FSP, a crônica de João Pereira Coutinho:
Esperava mais. Falo do discurso de Vladimir Putin no Dia da Vitória. A expectativa seria que Putin declarasse guerra à Ucrânia. Ou que anunciasse a mobilização dos reservistas.
Não
aconteceu. As coisas não correm como o nosso Vladimir gostaria: com
milhares de mortos em um mês e meio de conflito —15 mil? 20 mil?—, ele
parece ter feito o mesmo erro que Hitler, em 1941, na Operação Barbarossa, quando achou que a União Soviética estaria conquistada em pouco tempo.
A
confiança do Führer era tão elevada —os grandes tiranos sempre foram
grandes otimistas— que o exército alemão encomendara equipamento militar
de inverno só para parte de seus homens: os que ficariam na União
Soviética como força ocupante.
O discurso de Putin foi uma repetição das velhas mentiras:
o Ocidente queria invadir a Rússia e usou os neonazistas da Ucrânia
como marionetes. Agora, é preciso que Moscou faça com os nazistas
ucranianos o que fez com os originais. Destruí-los.
A
fala de Putin, obviamente paranoica, desonra a memória dos que
realmente combateram Hitler. Homens e mulheres comuns que passaram pelo inferno em Leningrado ou Stalingrado.
Mas
mesmo nessa história de sacrifício —na resistência a Hitler, morreram
mais de 20 milhões de russos — Putin não conta a história toda. Será
preciso recordá-la?
Essa
é a tarefa que Ian Ona Johnson relembra em "Faustian Bargain: The
Soviet-German Partnership and the Origins of the Second World War", ou
barganha faustiana, a parceria soviético-germânica e as origens da Segunda Guerra Mundial, da Oxford University Press.
Já fiz referência a esse livro numa coluna passada,
mas é inevitável não voltar a ele nos dias de amnésia que vivemos.
Porque Johnson mostra como a colaboração entre a Alemanha e a União
Soviética não começou com o infame Pacto de Não-Agressão entre os dois
países nas vésperas da Segunda Guerra Mundial.
Começou
antes. Em 1919, quando os vencedores da Primeira Guerra se reuniram em
Paris para redesenhar um mundo entre as ruínas, a Alemanha foi
exemplarmente punida. Persiste a polêmica de saber se o Tratado de
Versalhes foi mais gravoso do que, por exemplo, o Tratado de
Brest-Litovsk, que a Alemanha impôs à Rússia em 1918 para que os
bolcheviques saíssem do conflito.
É
uma boa pergunta: a Rússia perdeu um terço da sua população e terra
fértil e viu a sua capacidade industrial dizimada para metade. Razão
pela qual é perfeitamente razoável imaginar que o Tratado de Versalhes
que os aliados impuseram à Alemanha não seria muito diferente da punição
que a Alemanha teria imposto aos aliados, caso tivesse vencido a
guerra.
Seja
como for, a Alemanha e a nova União Soviética tinham dores comuns, que
rapidamente se tornaram uma colaboração. Conta Johnson que, depois do
Tratado de Rapallo de 1922, que normalizou as relações entre os dois
países, Moscou e Berlim começaram uma parceria militar.
Os
alemães garantiam tecnologia, conhecimento e capital ao depauperado
Exército Vermelho. A União Soviética permitia que a Alemanha contornasse
as limitações militares impostas por Versalhes, concedendo em solo
soviético as bases, as academias, os laboratórios e as fábricas que
começaram a rearmar o exército germânico.
A colaboração terminou com a ascensão ao poder de Hitler, em 1933. Mas foi retomada em 1939, e sempre com o mesmo objetivo: aumentar e modernizar a capacidade bélica dos dois países.
Nesse
sentido, o Pacto de Não-Agressão, assinado nas vésperas da Segunda
Guerra Mundial, deve ser visto como a consequência lógica de uma
parceria mais antiga, sem a qual a Alemanha e a União Soviética não
teriam emergido como os dois titãs militares da Europa pós-1918.
Ou,
em outras palavras, a Alemanha e a URSS puderam dividir a Europa de
Leste em "esferas de influência" (adoro eufemismos) porque ambas
reforçaram o poder de ambas. Pelo menos, até Hitler quebrar o acordo
—para sua perdição.
O sacrifício russo na Segunda Guerra foi inegável e inestimável. E ele deve ser celebrado pelos homens e mulheres comuns, vítimas de duas tiranias gêmeas:
a de Hitler e a de Stálin. Mas a apropriação desse sacrifício por um
regime que faz em 2022 o que Hitler fez em 1941 —invadir um país
soberano para submetê-lo aos caprichos de um poder imperialista— é
irônica e grotesca.
Na Segunda Guerra Mundial, o Kremlin, ao contrário do povo, tem pouco de que se orgulhar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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