A presença dos chechenos na Ucrânia é a evidência de uma guerra dentro da guerra. Leonardo Coutinho para a Gazeta do Povo:
Nesta
semana, os meios estatais russos e as redes de propaganda e
desinformação que Moscou alimenta pelo mundo afora exibiram um vídeo em
que soldados barbudos celebram a “libertação” de Mariupol – a cidade
ucraniana que leva este nome em homenagem à mãe de Jesus – e que foi a
localidade mais atacada pelas tropas de Vladimir Putin desde o início da
invasão em fevereiro. Eles celebravam a vitória sobre uma cidade em
ruínas, aos gritos de Allahu akbar (“Alá é maior”) – uma expressão
islâmica que é usada pelos muçulmanos desde as orações e momentos de
júbilo mais pacíficos até os momentos de mais extrema loucura
demonstrada por seus radicais em atentados e outras barbáries.
Os
barbudos de Putin não fazem parte de seu exército regular. São
chechenos que servem como paramilitares a Ramzán Khadyrov, um títere do
Kremlin que ocupa a “presidência” da Chechênia com a permissão do
presidente russo. Formalmente, esses milicianos estão sob o guarda-chuva
das Forças Armadas Russas, mas são um poder paralelo que atua nas
trevas sob as ordens diretas de Khadyrov.
O
“presidente” Khadyrov é o herdeiro de um clã que lidera parcela
significativa da minoria islâmica chechena que lutou contra a Rússia
pela independência, mas depois mudou de lado e passou a vender não só a
influência, mas a violência, para conter os separatistas e ajudar Putin a
manter o território sob seu controle.
A
presença dos chechenos na Ucrânia é a evidência de uma guerra dentro da
guerra. Enquanto Putin emprega os milicianos de Khadyrov no combate,
pelo menos dois batalhões separatistas chechenos lutam ao lado das
tropas ucranianas. Uma guerra civil foi exportada para o teatro de
operações na Ucrânia.
Putin
não tem simpatia alguma pelos chechenos. Sob sua batuta, a Rússia os
enfrentou duas vezes desde o colapso da União Soviética. Perdeu uma e
ganhou outra, recuperando não só o território, mas a influência sob a
brutalidade terceirizada por Khadyrov, que é acusado de crimes contra a
humanidade contra seu próprio povo. Imagine o que ele não é capaz de
fazer em terras estrangeiras. A propaganda russa não faz questão de
esconder a reputação de carniceiro que seu aliado-útil cultiva.
Não
é de hoje que entre as intenções de Putin está a de transformar a
Ucrânia em um lugar inviável. Um Estado falido na Europa. As lutas
sectárias que o presidente russo exporta para a Europa são um
ingrediente pernicioso, que aumenta as suas chances de sucesso. E também
não é novidade para ninguém que ele quer colocar os chechenos para se
devorarem. Nada mais eficiente que uma arena no exterior, bem longe do
território que ele tem sob controle.
A
presença de Khadyrov e seus soldados na Ucrânia tem sido explorada por
Putin internamente. Além de mandar uma mensagem de que está jogando duro
na “desnazificação” da Ucrânia, mostra que o domínio russo sobre os
chechenos nunca foi tão sólido. As redes russas espalharam que as forças
especiais chechenas desembarcaram na Ucrânia com a missão principal de
assassinar o presidente Volodymyr Zelensky. E que toda e qualquer ação
prévia, como a tomada de Mariupol, são passos para alcançar o objetivo.
Outro
aspecto da presença dos milicianos chechenos no campo de batalha,
combinados com os mercenários que Moscou importou da Síria: demonstra
que Putin está se preparando para uma guerra urbana. Com elementos de
guerrilha e atores assimétricos. Uma evolução da guerra que começou com
ingredientes convencionais e tem potencial para se transformar em um
conflito de longa duração e alta taxa de letalidade e destruição. A
experiência dos chechenos nos combates urbanos bem-sucedidos contra os
russos no passado agora será usada pelos russos em seu favor para
inviabilizar a Ucrânia.
As
lições não vêm apenas das disputas internas, mas da própria experiência
russa na guerra civil da Síria, onde a Rússia foi um ator predominante,
mas com nenhuma ou quase nenhuma participação regular. Foi um potente
financiador e fomentador dos grupos aliados ao ditador Bashar al-Assad
que se digladiaram no conflito que se iniciou em 2011 e está longe de
seu fim.
Enquanto
a maioria dos analistas sua frio pensando no risco de uma guerra
nuclear, Putin avança minando a reputação do Ocidente, disseminando
mentiras e plantando um nível de discórdia, ressentimento e fracasso no
contexto europeu.
Talvez
a tragédia humanitária que levou 7 milhões de sírios a deixarem o seu
país e muitos deles a encarar a loteria de vida ou morte atravessando o
Mediterrâneo ou o mar Egeu em busca de asilo na Europa não seja algo tão
desconexo das batalhas sob os gritos de Allahu akbar em solo ucraniano.
Dependendo da escalada do conflito urbano, em que chechenos matarão
chechenos, o risco do alistamento de radicais islâmicos (cuja presença
grassa na Europa) cresce de forma exponencial.
As
ações de Putin não podem ser negligenciadas ou analisadas dentro de
conceitos convencionais de guerra. Tal como as tradicionais matrioskas
russas, a guerra de Putin esconde dentro de si algo mais. E sempre há
algo ainda mais oculto sob cada uma de suas camadas.
Até
uma possível derrota militar ou recuo – algo em que muita gente tende a
crer – pode trazer um objetivo implícito. Putin está vencendo a guerra
em vários de seus objetivos implícitos. A adesão que Putin obteve em
vários setores do Ocidente (da esquerda radical ao direitismo delirante)
é apenas uma das conquistas. A Ucrânia como problema já era. Virou
pretexto. O que preocupa é o que virá depois dos escombros dessas
guerras dentro de guerras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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