O coronavírus desperta a alegria maquiavélica de quem enxerga no frenesi
que acompanha a doença a oportunidade de fazer prevalecer sua visão
política. Artigo de Paulo Polzonoff Jr., tomando como exemplo o filósofo canastrão Slavoj Žižek (marxista, obviamente):
A maioria da população está preocupada com o coronavírus. Quem é
autônomo teme não ter renda e quem está empregado teme a demissão. Quem
tem mais de 60 anos teme o fato de estar no grupo de risco e quem tem
menos teme pelos pais e avós. E quem tenta manter o otimismo e alguma fé
diante da avalanche de notícias ruins teme acabar soterrado pelo
pessimismo e fatalismo.
Mas há sempre quem se regozije com o sofrimento humano. Não me
refiro, aqui, aos espertos que vendem lenços enquanto os outros choram
ou aos estelionatários que oferecem soro de imunidade ou coisas do
gênero. Nem tampouco à contraditória “alegria estoica” de quem sabe que a
pandemia do coronavírus um dia vai passar e também que não há o que
fazer diante do pânico que se instalou no mundo – a não ser lavar as
mãos, claro.
Estou me referindo à alegria maquiavélica de quem enxerga no frenesi
que acompanha a doença a oportunidade de fazer prevalecer sua visão
política de mundo.
“Não toque em livros”
Me deparei pela primeira vez com essa estranha felicidade diante da
morte em massa de pessoas num artigo do filósofo Slavoj Žižek publicado
no site da editora Boitempo. Logo no começo do texto, o sempre
contraditório Žižek fala dos males dos “vírus ideológicos” para em
seguida dizer que “é possível que outro vírus ideológico, este muito
mais benigno, também deva se alastrar e, com sorte, infectar a todos
nós: o vírus de começarmos a pensar em possibilidades alternativas de
sociedade, possibilidades para além do Estado-nação, e que se atualizam
nas formas de cooperação e solidariedade globais”.
Ou seja, Žižek está feliz com a pandemia de coronavírus porque, para
ele, a doença e a crise e pânico que a acompanham são uma chance de ouro
de ele ver renascer e triunfar o combalido comunismo. Na argumentação
do empolgado Žižek há espaço para tudo, desde curiosos conselhos de
higiene como “não toque em livros” até a sádica observação de que os
cruzeiros, ícones do estilo de vida capitalista e para ele uma
“obscenidade”, foram um dos primeiros alvos do coronavírus.
Žižek, porém, é de um cinismo sem igual, e por isso salienta que “o
ponto não é se aproveitar sadicamente do sofrimento generalizado
contanto que ele contribua com nossa causa”, para em seguida propor não
“o comunismo à moda antiga, é claro, mas algum tipo de organização
global capaz de controlar e regular a economia, bem como limitar a
soberania de Estados-nação quando assim for necessário”.
Ou seja, o comunismo à moda antiga.
Mas, no texto, Žižek dobra a aposta na combinação de cinismo, mentira
e aquela ignorância cheia de sentimentalismo hipócrita característica
dos maiores expoentes do marxismo 2.0 para, primeiro, propor não só
tratamento de saúde “gratuito” para os norte-americanos, como promete o
senador Bernie Sanders, não por acaso ídolo de Žižek. Ele sugere que se
monte “algum tipo de rede global de atendimento de saúde”.
Depois, no delírio de quem sofre de uma intensa febre maoísta com
pequenas pintinhas de stalinismo espalhadas pelo corpo, Žižek argumenta
que a única forma de defender a liberdade é... abdicar da liberdade.
Isto é, se render à disciplina do Estado que, para ele, na China
comunista mostrou-se eficaz em impor medidas de contenção do
coronavírus.
No futuro sonhado pelo alegre Žižek, o marxismo ressurge travestido
de solidariedade e individualismo e totalitarismo convivem
pacificamente. Numa passagem que é pura utopia perversa, ele prevê que
“não é apenas o Estado e outras instâncias que nos controlarão: devemos
aprender a controlar e disciplinar a nós mesmos”.
Falácias e oportunismo
Mas nem só de Žižek vive o neomarxismo. Ele se manifesta também no
pensamento perigosamente simplório do homem comum, aquele que não dispõe
de PhD nem jamais abriu um livro na vida (e não por questões de
higiene, como propõe Žižek), mas que hoje tem à sua disposição uma das
armas mais nocivas para propagação dessa doença que debilita o intelecto
e o espírito: as redes sociais.
Já escrevi sobre o fetiche da peste – a ideia de que uma pandemia
como a do coronavírus surgiu para purificar a Humanidade, eliminando os
maus e recompensando os bons. É um fetiche ambíguo, que afeta tanto os
que o rejeitam quanto os que nele chafurdam para dar vazão a um impulso
que só posso classificar como eugenista. Isto é, um impulso que tem por
base a ideia de que a Humanidade pode ser melhorada com a eliminação dos
indesejáveis.
E os indesejáveis, para essa gente que acredita no planejamento
social, passam necessariamente pelas pessoas que defendem a liberdade
individual e econômica, aquelas que conseguiram reduzir a miséria no
mundo ao longo de todo o século XX com base na premissa de que as
interações humanas ao acaso e motivadas pela autossatisfação são
benéficas tanto para indivíduos quanto para a sociedade como um todo.
Duas postagens chamam a atenção porque revelam toda a mesquinhez
daqueles que se deixam levar pelo mito purificador da pandemia. A
primeira, do antropólogo Edgard Piccino, diz que o coronavírus está
ensinando algumas lições para a Humanidade. A saber: “Estado mínimo não
funciona; iniciativa privada não atende o interesse coletivo; no
capitalismo o lucro está acima da vida; a solidariedade é a base do bem
estar comum; e não devemos eleger dementes”. A publicação teve um
Maracanã de interações, o que só prova que a ignorância é tão ou mais
nociva do que um vírus da covid-19.
Descontando a validade do último item (que, apesar do disfarce de
isenção, é tão-somente uma crítica política que tem como horizonte as
próximas eleições), todas as críticas de Piccino passam pela assombrosa
ideia de que precisamos de um grande timoneiro a guiar nossa nau por
entre as tempestades próprias da história.
Outra vertente desse triste culto que celebra o fetiche da peste é a
ambiental, para a qual o coronavírus é uma bênção maior do que qualquer
New Deal Verde que uma Ocasio-Cortez qualquer é capaz de propor. São
várias as publicações que celebram a diminuição da poluição mundial
causada pela redução da atividade econômica no mundo todo. O fato de as
pessoas morrerem e empobrecerem, o que no médio e longo prazo só gerará
ainda mais poluição, não importa. O que importa é ceder à falácia da Mãe
Terra.
“Os cidadãos de Wuhan podem finalmente ouvir os pássaros cantando
depois de anos, os canais de Veneza estão limpos e cheios de peixe e dá
para ver os montes Tatra a partir de Cracóvia porque a fumaça
desapareceu. Isso não é um apocalipse. É um despertar”, escreve uma
pessoa que diz estar “curando a si mesma e aos outros por meio da arte”.
Até Gabriela Pugliesi, famosa e influente por algum motivo que
desconheço e que está com covid-19, romantizou o vírus, anunciando-o
como o arauto de uma nova era, mais pura e igualitária. Escreveu a moça:
“Algo invisível chegou e colocou tudo no lugar. De repente os combustíveis baixaram, a poluição baixou, as pessoas passaram a ter tempo, tanto tempo, que nem sabem o que fazer com ele. Os pais estão com os filhos, em família. O trabalho deixou de ser prioritário, as viagens e o lazer também. De repente silenciosamente, voltamo-nos para dentro de nós, para entendermos o valor da palavra solidariedade”.
Hino comunista
Isso sem falar nos artistas multimilionários que, do conforto da
quarentena regada a espumante em suas mansões, gravaram um jogral com a
fatídica Imagine, de John Lennon – esse mal disfarçado hino em homenagem
à utopia comunista.
A mesma utopia que, imposta na vida de 1,3 bilhão de chineses, e por
meio de seu aparato repressor, deu origem a este pandemônio viral, sem
contar Holodomor, gulags e outras aberrações cometidas em nome da
solidariedade e da melhoria da espécie de humana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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