Apesar das incertezas decorrentes do coronavírus, espera-se que a
orientação do Supremo propicie, nos limites do que está ao alcance do
Direito, maior clareza e segurança jurídica para autoridades sanitárias,
cidadãos e setores econômicos. Artigo de Francisco Zardo para a Gazeta:
No dia 19 de março, o governador do Rio de Janeiro publicou o Decreto
46.980, determinando a suspensão dos voos, a circulação dos ônibus e a
atracação de cruzeiros oriundos de países ou estados com circulação do
coronavírus. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) reagiu,
afirmando que os aeroportos são bens federais e, portanto, somente a
União poderia determinar o seu fechamento.
No dia seguinte, o presidente da República editou a Medida Provisória
926/2020, estabelecendo que as autoridades poderão adotar de modo
excepcional e temporário, no âmbito de suas competências, restrições à
entrada no país e à locomoção entre estados e municípios, conforme
recomendação técnica fundamentada da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa).
No dia 24 de março, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo
Tribunal Federal, atendeu em parte o pedido formulado pelo PDT na Ação
Direta de Inconstitucionalidade 6.341, ajuizada contra a MP.
Segundo o PDT, a MP esvaziaria a competência e a autonomia conferidas
pela Constituição Federal a estados e municípios para cuidar da saúde e
executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica e, assim, impor
isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e
aeroportos e a interdição de atividades e serviços essenciais.
Em sua decisão, o ministro manteve a MP 926/2020 em vigor. Entendeu
que a norma não esvaziaria, antes endossaria atos de restrição editados
por autoridades, no âmbito das respectivas competências, para o
enfrentamento ao coronavírus. Por isso, não haveria ofensa à
Constituição. Com finalidade pedagógica, concedeu liminar para tornar
explícita a competência concorrente, em termos de saúde, de modo que a
MP 926 não afasta a tomada de providências normativas e administrativas
por estados e municípios.
Entretanto, um dia depois, em nova decisão, Marco Aurélio negou a
liminar requerida pela Rede Sustentabilidade na ADI 6.343 contra artigos
da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento do
coronavírus. Afirmou que, “ante pandemia, há de considerar-se a
razoabilidade no trato de providências, evitando-se, tanto quanto
possível, disciplinas normativas locais”.
A organização político-administrativa do Brasil compreende a União,
estados, Distrito Federal e municípios, todos autônomos. Ao contrário do
que poderia supor o senso comum, não há hierarquia entre os entes da
federação. Cada qual exerce competências próprias, conferidas pelo texto
constitucional. À União compete, por exemplo, disciplinar a aviação
civil, o transporte rodoviário entre estados e definir quais são os
serviços e atividades essenciais. Aos municípios compete organizar o
transporte coletivo municipal e legislar sobre assuntos de interesse
local, tais como o horário de funcionamento do comércio. É atribuição
dos estados a disciplina do transporte intermunicipal e outras
competências residuais que não tenham sido conferidas à União ou aos
municípios.
Visto sob este prisma, o tema não desafiaria maiores dúvidas. A
questão é que, nos termos do artigo 23, II, da Constituição, o cuidado
com a saúde é competência comum da União, estados e municípios. Ou seja,
todos são responsáveis, devendo prevalecer, na expressão de Fernanda
Dias Menezes de Almeida, o “ideal de colaboração entre as pessoas
político-administrativas”. Não é, todavia, o que se tem visto no
enfrentamento ao coronavírus, marcado, lamentavelmente, pelos mesmos
conflitos pessoais e partidários que há tempos dividem e atrasam o país.
A penumbra entre as esferas de competência é ampliada pelo artigo 24,
XII, da Constituição, que atribui a União e estados competência
concorrente para legislar sobre a proteção e defesa da saúde. À União
cabe editar normas gerais e aos estados, normas suplementares visando o
atendimento de situações regionais específicas. No contexto de uma
pandemia, é permitido aos estados restringir voos para conter a
disseminação do vírus em sua população?
O presidente do STF, Dias Toffoli, declarou que a decisão proferida
pelo ministro Marco Aurélio na ADI 6.341 será examinada pelo plenário na
sessão do próximo dia 1.º de abril. A iniciativa é oportuna e
inadiável, por três razões. Primeiro, porque ao Supremo compete a guarda
da Constituição, cabendo a ele arbitrar os conflitos entre os entes da
Federação resultantes da distribuição constitucional de competências.
Segundo, porque as decisões do STF em ADI são vinculantes para as demais
instâncias do Poder Judiciário e para o poder público. Terceiro,
porque, não bastasse o efeito vinculante, decisões colegiadas, tomadas
após amplo e público debate, tendem a ser mais respeitadas. Apesar das
incertezas decorrentes do coronavírus, espera-se que a orientação do
Supremo propicie, nos limites do que está ao alcance do Direito, maior
clareza e segurança jurídica para autoridades sanitárias, cidadãos e
setores econômicos. Com a palavra, o STF.
Francisco Zardo, mestre em Direito
do Estado, é professor de Direito Administrativo em cursos de
pós-graduação e presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da
Administração da OAB/PR.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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