O fenômeno conhecido como “cancelamento” julga o passado segundo a ótica
de hoje e destrói o que é considerado inconveniente. Dagomir Marquezi
para Oeste:
O cancelamento não é nenhuma novidade do século 21. Em 331 a.C.,
Alexandre, o Grande, já tinha “cancelado” a biblioteca de Persépolis com
um grande incêndio. No século 7 d.C., monges católicos irlandeses
queimaram 10 mil manuscritos rúnicos que contavam a história da
civilização celta. A chamada “guarda vermelha” eliminou obras de arte e
literatura “burguesas” na China de Mao Tse-tung. Todos seguiam o mesmo
princípio do, “se discordo de alguma coisa, eu destruo”.
“Eu vou escrever no muro: hoje é o passado do futuro”, já cantava a
banda de rock paulistana Joelho de Porco. O presente é a soma da nossa
experiência passada. Nele, tentamos compreender o passado para poder nos
aperfeiçoar para o futuro. Se o passado for apagado, o presente fica
pobre, artificial, mentiroso. E o futuro, condenado a repetir os erros
do passado.
O fenômeno conhecido como “cancelamento” anula essa lógica. Julga-se o
passado segundo a ótica de hoje e se destrói o que é considerado
inconveniente. O Taleban dinamitou as estátuas gigantes de Buda no
Afeganistão em março de 2001 por considerá-las uma “ofensa ao Islã”.
Shaun King, um dos gurus do movimento Black Lives Matter, declarou em
2020 a quem quisesse ouvir: “Sim, eu acho que as estátuas do branco
europeu que eles clamam ser Jesus também devem ser derrubadas. Elas são
uma forma de supremacia branca. Sempre foram”.
Ninguém sabe exatamente qual era a aparência real de Jesus Cristo. E,
se Jesus fosse branco como um sueco, qual seria o problema? E se fosse
negro como um sudanês? E se fosse oriental, latino ou mulato? Isso
mudaria alguma coisa da herança que deixou para esses dois milênios de
cristianismo? Quem julga pela cor da pele? Um racista.
“Cancelar” é a palavra escolhida para indicar essa limpeza seletiva e
profilática do presente e do passado. Me lembra o filme O Brilho Eterno
de uma Mente sem Lembranças. Nele, Jim Carrey vai a uma clínica
clandestina para apagar a memória de um caso de amor com Kate Winslet
que acabou mal. (E, no processo, deletar as boas lembranças também.)
Spoiler: o personagem felizmente interrompe o procedimento antes de se
atirar nesse mergulho de negação do próprio amadurecimento.
Além de imagens do passado, o “cancelamento” atinge também pessoas
consideradas inapropriadas para o mundo perfeito que os canceladores
imaginam. Um caso ilustrativo ocorreu no jornal mais importante do
mundo, o New York Times. No início de junho o editor de páginas
editoriais do NYT, James Bennet, publicou uma coluna escrita pelo
senador republicano Tom Cotton. Cotton defendia o uso de forças armadas
contra manifestações que se transformassem em tumultos violentos e
saques.
O YouTube tem vários registros de cidadãos negros norte-americanos
furiosos com esses tumultos que destruíam seus locais de trabalho e
acabavam com seus empregos, deixando-os ainda mais pobres. O artigo do
senador Cotton foi publicado. Leitores e jornalistas engajados da casa
protestaram com fúria e James Benett renunciou ao cargo. Escreveu na
despedida que “debater ideias influentes abertamente, ao invés de
deixá-las sem resposta, é bem mais provável de ajudar a sociedade a
encontrar as respostas certas”.
O que estava em jogo nesse episódio era a incapacidade de admitir uma
opinião com a qual se discorde. A negação da liberdade em si. E isso
vale tanto para o New York Times quanto para a Fox News e a imprensa
brasileira. Cancelando James Benett e a possibilidade do contraditório, o
NYT e seus leitores ficaram mais pobres.
Preocupante também foi ver a HBO tirando de sua linha de exibição o
filme …e o Vento Levou. É óbvio que …Gone with the Wind é o que é porque
foi lançado em 1939, baseado num livro escrito em 1936, retratando
acontecimentos da década de 1860. São datas do passado, quando os negros
eram vistos, sim, como seres caricaturais, meio ridículos, falando uma
linguagem que só eles entendiam. Eram negros vistos preconceituosamente
segundo a ótica branca de 1860, 1936 e 1939. E havia uma simpatia no
filme e no seu romance original às forças que lutaram pelo sul
escravocrata na Guerra Civil Americana.
Mas isso tira a grandeza do filmão com Vivien Leigh e Clark Gable que
já virou patrimônio da memória coletiva global? (Felizmente a HBO agiu
com maturidade ao retornar o filme à sua programação. Incluiu uma
introdução explicando que o filme era um “produto de seu tempo”. E que
seria “apresentado como foi criado, pois do contrário seria como
declarar que esses preconceitos não existiram”.)
Outro exemplo de filme “cancelável”: O Nascimento de Uma Nação, épico
realizado em 1915 por D. W. Griffith, considerado quase por unanimidade
o marco inicial da moderna linguagem cinematográfica. E, no entanto,
seus “heróis” são homens da ultrarracista Ku Klux Klan. Eu assisti ao
filme. A capacidade narrativa pioneira de Griffith há 105 anos fica cada
vez mais admirável conforme o tempo passa. E os idiotas vestidos de
capuz e lençol brancos da KKK continuam idiotas depois de tanto tempo.
Isso é perspectiva histórica.
O maior problema dessa onda de cancelamento é que não estabelece um
limite. Monteiro Lobato deve ser cancelado porque colocou Tia Nastácia
trabalhando na cozinha do Sítio do Pica-Pau Amarelo? Tarzan deve ser
apagado por representar o domínio colonial europeu sobre os povos
africanos? As pirâmides do Egito devem ser derrubadas por representar o
domínio dos faraós sobre seus escravos? O Kremlin deve ser demolido por
representar a aristocracia falida dos czares russos? O Partenon de
Atenas deveria vir abaixo por causa da falta de diversidade racial entre
os filósofos gregos?
Felizmente o Brasil está passando meio batido por essa onda de fúria.
Jornalistas conservadores e liberais ainda podem escrever em jornais
esquerdistas (e vice-versa) sem que isso vire uma onda de indignação.
Nenhum livro foi cancelado, e a última tentativa de banir Monteiro
Lobato das escolas morreu em 2014. O Monumento às Bandeiras no Parque do
Ibirapuera em São Paulo permanece firme. Assim como o Cristo Redentor
“branco” no alto do Corcovado. É preguiça de ser revolucionário? É a
mística afabilidade do brasileiro? Não importa.
Os extremistas chiques passam. Os humanos comuns continuam. Temos
outros assuntos mais urgentes com que nos preocupar do que derrubar
estátuas ou censurar livros e filmes. Cancelamos o cancelamento.
Dagomir Marquezi, nascido em São
Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!,
Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma
Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte
de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas
relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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