Anne Applebaum autografa a mudança tectônica na linguagem ideológica do século XXI. João Pereira Coutinho, via FSP:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Ainda me lembro quando Anne
Applebaum era uma respeitada intelectual conservadora. De inclinação
liberal, sem dúvida, mas conservadora. Foi assim que a conheci, uns 15
anos atrás, quando esteve em Lisboa para o lançamento de "Gulag", o
notável estudo sobre o sistema prisional soviético que valeu um
Pulitzer.
Mas o mundo mudou e Applebaum é hoje "persona non grata" para a direita conservadora de 2020. O que aconteceu?
Com Applebaum, talvez nada. Mas, como a própria afirma no seu
"Twilight of Democracy: The Failure of Politics and the Parting of
Friends" (crepúsculo da democracia: o fracasso da política e a separação
dos amigos), o significado da palavra "direita" mudou bastante nos
últimos 20 anos.
Na virada do milênio, ser de direita significava acreditar na
democracia liberal, no mercado livre, no sistema de freios e
contrapesos, no Estado de direito, na Otan, na União Europeia.
Significava festejar o "fim da história", talvez com uma ingenuidade
excessiva.
Hoje, olhando para as direitas que tomaram conta do pedaço, significa
o contrário de tudo aquilo. Ser de direita é defender a democracia
iliberal, o nacionalismo econômico, o controle do Judiciário, o
isolacionismo internacional e o fim da União Europeia. Se essa é a
direita de 2020, Applebaum não faz mais parte dela.
Eis o primeiro mérito do livro: cartografar essa mudança tectônica na
linguagem ideológica do século 21. O fato de Applebaum viver na
Polônia, onde o partido Lei e Justiça simboliza muitos dos vícios da
nova direita, ajudou no diagnóstico.
Mas Applebaum não se limita à Polônia. Ela viaja pela Hungria, pelo
Reino Unido, pelos Estados Unidos, pela Espanha, pela Itália e
identifica essa mudança radical: o naufrágio da direita liberal e a
emergência da direita autoritária.
Mas existe um segundo mérito no livro de Applebaum: ela procura
mostrar como a nova direita precisa de intelectuais públicos para
prosperar. Alguns desses intelectuais eram seus amigos, visitas lá de
casa. Hoje, são "cheerleaders" de Viktor Orbán ou de Donald Trump. Que
se passou?
Sim, era possível detectar em muitos deles uma "predisposição
autoritária", um gosto pela homogeneidade e pela ordem, uma inclinação
por narrativas simples e simplórias.
Mas o poder, esse velho afrodisíaco, falou mais alto: de que vale ter
princípios quando esses princípios nos condenam à solidão e ao
empobrecimento?
Melhor participar no "espírito do tempo" e ter um lugar na mesa de quem manda.
O que se passou com os amigos de Applebaum foi descrito por Julien
Benda no seu "Les Trahison des Clercs", de 1927, que Applebaum cita em
abundância: se a função do intelectual é manter a razão e defender a
decência contra os poderes instalados, os intelectuais de Benda (e de
Applebaum) atraiçoaram o seu papel e emprestaram o seu talento e o seu
prestígio ao autoritarismo mais boçal.
Uma das melhores passagens do livro descreve uma visita que a autora
fez a uma velha amiga húngara que abandonou o liberalismo da década de
1990 para marchar com o partido Fidesz de Viktor Orbán.
Nas palavras da mulher, era necessário romper com a imitação vulgar
da democracia liberal e optar por uma forma mais autêntica de política
nacional.
Que essa forma autêntica seja também uma imitação vulgar do
nacionalismo que é possível ver nos quatro cantos do mundo, Brasil
incluso, eis uma ironia que escapou a essa mente vanguardista.
Críticas ao livro?
Tenho algumas. Para começar, não aceito que Applebaum junte na mesma
sacola o fenômeno Orbán com o brexit de Boris Johnson. Como escrevi
repetidas vezes, os argumentos sérios a favor do brexit –a defesa do
Parlamento inglês como instrumento central da vida política do país, por
exemplo– estão mais próximos da democracia liberal do que Applebaum
imagina.
Por outro lado, concordo com todos aqueles que acusam Applebaum de
não ter feito um maior esforço para compreender as razões profundas da
opção populista. Se a autora pensa que o povo elegeu líderes populistas
simplesmente por influência dos intelectuais, ela está dramaticamente
enganada.
Mas não está enganada no essencial: a primeira tarefa de um
conservador é recusar os apelos da política radical. Não interessa se os
apelos são revolucionários ou reacionários. São apelos utópicos em
qualquer dos casos, ou seja, inimigos do presente.
Como lembrava David Frum, um dos poucos amigos da autora que não
desertou, o conservadorismo do século 21 deve conservar a herança
liberal que triunfou no século 20 sobre todas as alternativas
totalitárias.
Se o livro sombrio de Anne Applebaum ajudar nessa causa, nem tudo estará perdido.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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