A lógica produtiva atingiu o nível simbólico dos contos de fadas. Luiz Felipe Pondé, via FSP:
Dissociação é um termo em psicologia que descreve uma espécie de
fragmentação da vida psíquica ou do comportamento. Alguém pode, por
exemplo, viver uma vida dupla, sem ter plena consciência do que está
fazendo. Ou praticar algo completamente dissociado do resto de sua vida,
tampouco tendo plena consciência disso.
Filmes já criaram assassinos em série que eram excelentes pais e
maridos. Ou uma excelente mãe e esposa pode ter casos amorosos em
viagens a trabalho como se nada tivesse a ver com sua vida familiar.
Pai, marido e assassino frio. Mãe, esposa e promíscua.
Muitos especialistas entendem que algum grau de dissociação se faz
necessário para suportar as enormes contradições que a vida "normal" nos
impõe.
Talvez só Deus e seu intelecto infinito (como diria Descartes no
século 17), e, por tabela, sua consciência infinita, suportaria uma
integração absoluta de todas as dimensões infinitas da vida e suas
antinomias (contradições insolúveis).
No plano dos mortais como nós, dissociação demais –todos concordam– seria patogênico.
Refiro-me hoje a um tipo específico de dissociação que acomete as
gerações mais jovens, principalmente ao adentrarem o mercado de
trabalho.
Independentemente desse tipo de dissociação, vale lembrar que no
grande romance "Pais e Filhos", de Ivan Turguêniev, do século 19 (e que
só ele merece uma coluna), o jovem Bazárov, primeiro grande niilista da
literatura russa, representante da geração dos anos 1860 na Rússia, os
liberais radicais e ancestrais dos bolcheviques, já nasceu doente.
Melancólico, dissociado afetivamente, cheio de ressentimento e
autoengano, o jovem, que depois virou calça jeans, já nasceu doente.
Mas, voltemos a nossa pauta de hoje.
Os jovens que adentram o mercado de trabalho hoje vivem uma
dissociação que pode ser caracterizada da seguinte forma: o mercado que
os recebe oferece, no plano estético ou sensorial, um ambiente de
trabalho que parece uma balada.
O ambiente parece um lounge, um "everlasting" êxtase (um êxtase sem
fim), com horas flexíveis de trabalho, home office descolado, ambientes
de relaxamento, colegas lindas, a saúde como modelo de vida escorrendo
pelas academias, causas sociais veganas de espírito, promessas de carros
caros, "rooftops" com vista para o futuro, trabalho em diversos países
do mundo, enfim, o trabalho e o mundo como um imenso parquinho ao
alcance deles.
A vida será muito mais legal, livre, feita de escolhas e divertida do
que a de seus pais e mães, atordoados, tristes e ridículos (querendo
ser jovens).
Já tentei dizer para pais e mães que os filhos e filhas deles acham
ridículo quando eles querem ser jovens, mas esses tolos não escutam a
sempre discreta voz da razão.
Na verdade, esses jovens vivem e viverão num mercado de trabalho mais
agressivo, mais competitivo, mais violento, mais sem limites, com mais
demandas e mais metas 44 horas por dia. A exigência de competência será
muito maior em todos os níveis, ainda que empacotada para presente.
A dissociação patogênica aqui, dito de forma resumida, é: apesar de
aderirem a uma vida "saudável", criativa e "rotinafree", os jovens
–aqueles mesmos que fazem mimimi quando se fala de matadouros de gado–
marcham, docilmente e felizes (sonhando com iPhones e capitais globais)
para matadouros com pufes, ioga e comida orgânica.
O chamado marketing de causas ajuda muito nesse processo dissociativo
que cobrará um alto preço em ansiolíticos e antidepressivos. Uma
leitura que pode ajudar é "Winners Take All" (Vencedores levam tudo), de
Anand Giridharadas, publicado pela editora Alfred A. Knopf, em 2018.
Nesta obra, o autor mostra como o engajamento social das grandes marcas é
para inglês ver.
Mas esta batalha é perdida. A lógica produtiva atingiu o nível
simbólico dos contos de fadas e as antigas princesas medievais hoje são
mulheres que trabalham 200 horas por dia, felizes por serem cativas.
Olho para o passado recente da pandemia e vejo como já nos seus
primeiros dias o mercado do coronavírus se organizava ao redor dos
delinquentes e dos conscientes.
A pandemia mostrou que nem um vírus está a salvo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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