O mais lamentável é a curiosa mistura do Sermão da Montanha e da
não-violência à Gandhi que Marcelo julgou oportuno introduzir pelas suas
palavras no coração dos portugueses. Artigo do professor Paulo Tunhas
para o Observador:
Com mais um fim do mundo – financeiro, económico e social – a
aproximar-se, a direita anda mais estranha do que nunca. Parece que se
deixou de preocupar com o futuro do país e enveredou pelo consolo do
misticismo. Para o cidadão comum, não apresenta nenhuma alternativa
discernível ao projecto de poder do PS de António Costa, antes pelo
contrário: apoia-o de todas as maneiras possíveis e imaginárias, mesmo
que isso signifique pactuar com erros, mentiras e ilusões. Para todos os
efeitos, serve-o. E isso, repito-o, com mais uma catástrofe de
dimensões bíblicas à porta e já a entrar pela casa dentro. Tanto
desinteresse, tanta ausência de vontade, é obra. Não sei se de Deus ou
do Diabo, mas suspeito que do segundo.
Marcelo, por exemplo, discursou no outro dia em Ovar. Um dos temas
foi a questão das restrições impostas por vários países europeus, em
particular do Reino Unido, às visitas a Portugal dos seus cidadãos, por
causa da taxa de propagação da Covid por estas bandas. E o que disse o
nosso Presidente? Cito: “Nós fomos e somos um exemplo. Não precisamos
das lições alheias para sermos um exemplo. Não dependemos de listas
alheias para sermos um exemplo, não retaliamos contra ninguém para
sermos um exemplo. Não fechamos a porta àqueles que nos fecham a porta,
porque entendemos que é assim que damos um exemplo”.
Por uma vez, a conhecida obsessão de Marcelo com o facto de sermos
(basta-nos querer) os melhores do mundo não é o mais lamentável do seu
discurso. O mais lamentável é a curiosa mistura do Sermão da Montanha e
da não-violência à Gandhi que ele julgou oportuno introduzir pelas suas
palavras no coração dos portugueses, quando deveria estar a discutir um
problema que é susceptível de uma análise racional: porque é que nos
revelamos incapazes, apesar de um assinalável esforço colectivo, em
combater eficazmente a actual pandemia? A chamada “ética da convicção” é
uma coisa muito linda e respeitável, mas trazê-la para primeiro plano –
“não retaliamos”, “não fechamos a porta”, etc. – quando o que se exige
do primeiro magistrado da nação é antes de tudo o exercício da “ética da
responsabilidade” – o que fazer para evitar a presente situação que
desgraça o país, como combater eficazmente aqui o surto pandémico – não é
apenas, perdoe-se a palavra, uma tontice. É uma declarada manifestação
do que se poderia talvez chamar a ética da irresponsabilidade. Marcelo
poderá ser uma pessoa muito inteligente, mas a sua inteligência tem por
vezes, e até começa a ser a regra, efeitos deletérios para o país. O
salto para a nossa suposta exemplaridade mística é um salto para o
abismo. Nada daquilo se aproveita para melhorar a nossa situação. E
isso, apesar de tudo, interessaria um bocadinho, não é?
E que dizer de Rui Rio, o chefe nominal da oposição, uma oposição que
tem a particular e muito original característica de o não ser? Não é
que Rio sofra de fraqueza de vontade, a célebre akrasia dos gregos. Não
vê o melhor, aprovando-o, e, por falta de carácter, faz o pior. Não é
nada disso. Pura e simplesmente, ele não vê o melhor. Em última análise,
Rio não tem vontade de disputar com Costa o lugar de primeiro-ministro.
Quando muito, ele aceitaria ser nomeado, por um outro qualquer processo
que não envolvesse conflito, para o cargo. E isso obviamente espelha-se
nas intenções de voto que as sondagens à sua maneira evidenciam: Costa e
o PS aumentam a sua distância para com Rio e o PSD. São apenas
sondagens, é claro. Mas alguém me explica porque carga d’água alguém,
fora os mais militantes dos aficionados do PSD, votaria num indivíduo
que patentemente não deseja levar a cabo o necessário combate político
para ser primeiro-ministro?
A mim, isto lembra-me as eleições presidenciais francesas de 1995.
Vivia na altura em França e tenho boa memória delas. O PSF queria que
Jacques Delors fosse o seu candidato. Delors gozava então de um imenso
prestígio e era, como se diz, um candidato ganhador. Concorresse ele e a
vitória era praticamente certa. E Delors queria obviamente ser
Presidente da República. Uma coisa, no entanto, ele não queria, puro
tecnocrata com imenso apreço por si mesmo que era: submeter-se ao
combate eleitoral, que obviamente via como uma degradação do seu
eminente estatuto. E, em finais de 1994, recusou aceitar a candidatura. O
PSF acabou, à falta de melhor, por escolher Lionel Jospin, um
trotskista “entrista” no PSF, que acabou por perder, na segunda volta,
para Chirac.
Foram, de resto, umas eleições muito divertidas. Chirac tinha um
acordo com o então primeiro-ministro, o seu “amigo de trinta anos”
Édouard Balladur: este último não se candidataria às presidenciais,
acontecesse o que acontecesse. Mas as danadas das sondagens começaram a
dar-lhe uma votação excelente, e ele, apoiado por um muito jovem Nicolas
Sarkozy, não resistiu e traiu o compromisso com Chirac. Chirac reagiu
energicamente e começou a subir. E foi aí que Balladur fez uma coisa
extraordinária. Para contrariar a imagem de distância para com as
pessoas que via como um obstáculo ao seu sucesso, simulou uma avaria no
helicóptero que o transportava para um comício já não sei em que cidade e
pôs-se a pedir boleia na estrada. Que coisa mais humana, que melhor
prova de proximidade com o homem da rua, se poderia esperar? Azar dos
azares, descobriu-se que a senhora que lhe deu boleia trabalhava no seu
gabinete (ou era casada com alguém que com ele trabalhava, disso já não
me lembro) e que tudo não passara de uma encenação. Chirac acabou por o
eliminar na primeira volta das eleições.
Mas voltemos a Portugal e a Rui Rio. Rio sofre de um problema
parecido com o de Delors. Considera-se muito a si mesmo e notoriamente
encara a banal luta política como contrária aos seus elevadíssimos
princípios éticos, que não cessa de apregoar. Com uma singularidade que o
distingue de Delors. À imagem de certos místicos franceses do século
XVII, Fénelon e Madame Guyon, que mereceram a condenação de Bossuet, Rio
parece ter adoptado uma particular versão do quietismo marcada pelo
“puro amor”, que implica passividade, o abandono e um consentimento a
uma vontade maior, a de Deus, que traz consigo, qual acto heróico, o
sacrifício da abolição da vontade própria e um repouso todo ele feito de
desinteresse e indiferença, uma abnegação absoluta que é uma forma de
não-vontade. A excepção a esse sacrifício da vontade dá-se apenas quando
Rio lida com os seus opositores no partido, invariavelmente
“deploráveis”, para falar como uma célebre candidata presidencial
americana, por acaso derrotada.
A questão que se coloca é: a quem, ou a quê, abandona Rui Rio a sua
vontade? Alguns sugerem que, em virtude de uma intensa fascinação pela
personagem, o seu “puro amor” é consagrado a Costa. Pela minha parte,
creio que o abandono místico se dirige a outra coisa, a saber à “ética”
que não lhe sai nunca da boca. Ou, pelo menos àquilo que, no seu desdém
pela banal política, ele chama “ética” e que aos seus olhos aconselha,
para dar apenas um exemplo, a abolição dos debates quinzenais para que o
primeiro-ministro “possa trabalhar” em paz e sossego.
Seja como for, é triste que, numa situação tão grave quanto a nossa,
uma situação que até ao fim do ano assumirá proporções verosimilmente
trágicas, a direita – pelo menos a de Marcelo e a de Rio – enverede tão
afoitamente pela via régia das consolações místicas. Fénelon e Madame
Guyon viam o “puro amor”, também concebido como caridade, como algo que
transcendia e superava a esperança, ainda maculada pela vontade do
interesse próprio. E isso toda a gente pode perceber: a “não-vontade” de
Marcelo e Rio arrisca-se a dar definitivamente cabo do que nos resta de
esperança. É a primeira consequência do actual caminho místico da
direita.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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