Em vez de manifestações ideológicas, quem quiser combater discriminações
racistas tem por onde começar: recolha de dados para realçar padrões de
discriminação e discutir soluções ajustadas à realidade. Artigo de
Alexandre Homem Cristo para o Observador:
Haverá poucas discussões mais estéreis do que esta sobre se Portugal é
um país racista. Estéril porque é uma discussão geralmente associada a
crimes que envolvem brancos e negros, a quente (sem que os factos
estejam apurados e as investigações policiais realizadas) e sem que seja claro se a cor da pele foi a motivação para o crime.
Estéril porque limita as manifestações de racismo a crimes de ódio e
violência, quando esta será apenas a ponta do icebergue de inúmeras
formas diárias de discriminação, que condicionam vidas e encolhem
horizontes. E estéril porque estes debates efémeros e generalistas nunca
colocam as perguntas realmente importantes. Como estas: quando
comparadas a brancos com as mesmas qualificações, as minorias raciais em
Portugal são prejudicadas (e, se sim, quais e em que grau) no
recrutamento para empregos, nos rendimentos, na habitação e na
realização de contratos de arrendamento, no acesso a serviços
financeiros, na participação em negócios?
É sempre uma desilusão constatar que estas perguntas rareiam no
debate político que rodeia o racismo. Não porque o racismo não seja um
tema político predominante, mas porque as abordagens que lhe são feitas
caem em declarações políticas (no melhor dos casos) ou em meros
oportunismos para canalizar agendas partidárias/ ideológicas. Seja para
manifestações e contra-manifestações (como esta e esta ou esta e esta, onde o racismo deixa de ser verdadeiramente o foco). Seja para defender que a “solução” para o racismo é abolir o modelo económico capitalista
(como se o racismo fosse uma invenção dos mercados e não tivesse
pergaminhos históricos noutros contextos sociais e políticos). Ora tudo
isto não é apenas a soma de oportunidades perdidas, é uma forma
indirecta de instigar ódio e ressentimento social, e uma perversão que
converte os partidos em ninhos de abutres, à espera de vítimas de
racismo ou de crimes violentos que encaixem nas suas narrativas. É
contraproducente, claro, mas é sobretudo moralmente ignóbil.
O debate sobre o racismo não deve circunscrever-se a isto. Mas, em
boa verdade, é difícil encaminhá-lo para outro lado: faltam indicadores e
recolha de dados objectivos, que permitam compreender a extensão de
discriminações racistas na sociedade portuguesa. Ou seja, aquelas
perguntas acima — sobre discriminações raciais no recrutamento
profissional, na escolaridade, nos rendimentos, nas oportunidades — não
têm resposta. Nos levantamentos estatísticos que orientam as políticas
públicas, não há dados étnicos/ raciais que possibilitem o cruzamento
com indicadores económicos, sociais e profissionais. E como não é
possível aplicar um tratamento sem antes proceder a um diagnóstico,
torna-se inconsequente enfrentar uma questão como o racismo sem dados,
às escuras e à mercê de percepções (positivas ou negativas) que poderão
não corresponder à realidade. Quem quiser realmente promover políticas
públicas contra discriminações racistas tem por onde começar: a defesa
de recolha de dados que incluam a dimensão racial, de forma a realçar
padrões e discutir soluções que estejam ajustadas à realidade.
Não ignoro que o tema é sensível e que, no ano passado, já foi alvo
de uma ampla discussão à volta da inclusão de identificação étnica nos
Censos 2021 — a decisão foi a de não incluir questões étnicas nos Censos, uma decisão que o Presidente da República considerou sensata, apesar de o grupo de trabalho formado a este propósito ter dado parecer positivo. Aquando deste debate, dei os meus dois tostões para a discussão nesta coluna.
E não só mantenho a posição crítica à decisão do INE e ao apoio da
Presidência, como creio que a emergência de inúmeras discussões fúteis e
gratuitas sobre o racismo em Portugal tem valorizado a minha posição:
se queremos mesmo combater o racismo nas suas múltiplas manifestações,
precisamos de dados empíricos e informação fiável, na medida em que
nenhum desafio social se derrota optando pela ignorância. É, aliás, o
que já se faz em algumas áreas do Estado, meio às escondidas. Na
Educação, por exemplo, publica-se o perfil escolar dos alunos de etnia cigana
— porque, goste ou não de aplicar indicadores étnicos, essa informação é
relevante para a monitorização de um sistema educativo com aspirações
de constituir elevador social.
O que temos não serve: manifestações e contra-manifestações, num
debate submetido à baixa política, promovido pelo sensacionalismo e
limitado a percepções movidas pela ideologia. Dito de forma simples:
combustível para os extremismos que promovem o ressentimento e
fragmentam o tecido social. Isto em nada contribui para melhorar a vida
daqueles que são efectivamente vítimas de racismo. Por isso, vire-se a
agulha. Não interessa discutir se Portugal é ou não um país racista.
Importa simplesmente constatar que o racismo existe em Portugal (como em
todos os países), que estará mais enraizado numas áreas da sociedade
portuguesa do que noutras e que, para lhe dar resposta, é necessário um
conhecimento objectivo e sustentado em dados, para orientar a discussão
construtiva de soluções. Continuar de olhos vendados, sem dados e sem
indicadores comparáveis é somente alimentar populismos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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