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Pelos olhos de Morricone, ouvimos e vemos a nossa própria emoção. Artigo de Jeffis Carvalho e Miguel Forlin, via Estado da Arte:
Estamos diante dos olhos de Romy Schneider em primeiríssimo plano no
filme A Rebelde (1970), de Alberto Bevilacqua. A câmera explora esse
belo rosto, mas a sua intenção não é a beleza em si — é mesmo o
sofrimento ou as marcas que ele deixou nessa mulher batalhadora e
sofrida, diante do corpo sem vida do marido, que jaz na praça. Pontuando
a cena, o que ouvimos é uma melodia que parece reforçar cada sulco que
se vê naquela paisagem que Carl Theodor Dreyer definiu como o que de
mais importante o cinema pode filmar. Que música é essa que lembra os
sinos de uma igreja que aos poucos vai exigindo mais e mais a nossa
cumplicidade com aquele rosto? Podemos tirar o som, a música e deixar
apenas as imagens. Tudo, então, parece perder sentido, razão. Não porque
a cena seja ruim e a música sirva para salvá-la. Ao contrário: a
música, esta música, está em simbiose com as imagens para compor um
quadro único, belo e forte.
Romy Schneider |
A obra do maestro e compositor italiano Ennio Morricone, falecido há
uma semana, aos 91 anos, nunca foi o que se chama de score, música de
serviço, que embala sequências de um filme. Ela é parte indissolúvel de
toda produção que pode contar com o seu talento diferenciado. Já se
disse que Alfred Hitchcock pensava cinematograficamente. O mesmo vale
para Morricone. O maestro fazia música de forma cinematográfica. Nada em
suas composições é gratuito, aleatório — talvez porque ele componha com
o olhar, e cada nota em sua partitura seja como um elemento da
mise-en-scène, tal como o são os atores, a cenografia, a luz, os
movimentos de câmera. Sua música não é complemento, adorno ou tábua de
salvação: é música cinematográfica.
Morricone compôs para mais de 500 trilhas, em uma carreira de 60
anos. De todo o seu imenso, intenso e primoroso catálogo, a sua parceria
com o cineasta Sergio Leone (eles foram colegas de ginásio) é a que
melhor exprime a sua música e explica todo o seu trabalho com outros
grandes nomes do cinema, de Sergio Sollima a Brian de Palma, de Bernardo
Bertolucci a Roman Polanski, de John Boorman a Giuseppe Tornatore, de
Terence Malick a Dario Argento, de Elio Petri a Quentin Tarantino.
Como destaca o jornalista João Máximo, em seu livro A Música do Cinema:
Os grandes compositores do gênero western no cinema americano, provavelmente partindo da proposta estética de Aaron Copland, fizeram exatamente o mesmo que os produtores, diretores e roteiristas tinham feito com os filmes. Isto é, não tentaram reproduzir fielmente a música do velho Oeste e sim compor suas trilhas sonoras com andamentos, timbres, cores orquestrais, formas, enfim, que lhes pareciam mais adequadas àquele tipo de filme. Perfeito. E o que fez Morricone? Deu à sua música o mesmo caráter que Leone daria aos seus filmes, ambos partindo do zero para gerar o novo western. Por terem feito isso com competência, é imperioso reconhecer neles outro mérito: o de usarem seu direito de reinventar o gênero sem copiar ninguém.
A originalidade de Morricone faz dele um inovador na utilização de
instrumentos pouco usuais, sempre como recurso estético que pode
dialogar com a visão do cineasta. Com Leone, o compositor soube como
nenhum outro empregar o recurso musical primordial, a voz humana,
valendo-se dela como o que de fato ela é, um instrumento sonoro. Com
isso, deu a Leone uma música para traduzir a sua ambição estética de
conceber o western como uma ópera. Esse procedimento atinge o sublime em
Era uma vez no Oeste, de 1968.
Era uma vez no Oeste. |
Compor música cinematograficamente, com o olhar, permite a Ennio
Morricone ser quase sempre um coautor, já que ela é um amálgama para as
intenções dos cineastas com os quais trabalha. Em outras palavras, a sua
música tem uma vida umbilicalmente ligada aos filmes. Como no início do
texto, tente tirar a música de qualquer um desses trabalhos e ele
ficará manco, muitas vezes sem sentido.
Por outro lado, se a música tem essa ligação umbilical, como é
ouvi-la externamente, em um concerto? Sem o filme, ela perde seu
sentido, sua razão de ser e torna-se apenas mais uma composição, uma
melodia, uma peça musical? É nesse momento que a música de Morricone
mostra, efetivamente, por que é cinematográfica. E isso explica o enorme
sucesso de suas apresentações orquestrais ao vivo, a sua grande
vendagem de discos e a legião de milhões de fãs pelo mundo.
Ao pensar a música já como cinema e criá-la totalmente em sintonia
com a mise-en-scène, em parceria com os cineastas, Morricone opera a
façanha de fazer com que cada melodia, cada canto, cada instrumento
diferenciado, cada assobio, traga, a quem os ouve em um concerto,
imediatamente a cena, a sequência, até mesmo um plano. Com o seu olhar
musical, Morricone permite que, ao escutarmos as suas composições, os
nossos olhos resgatem os filmes em todo o seu esplendor, em toda a sua
força e beleza.
Esse resgate vai, inclusive, muito além. E aqui está a absoluta
genialidade de Ennio Morricone. Quando ouvimos a sua música
cinematográfica, não resgatamos, em nossa memória, apenas a cena, a
sequência e os planos dos filmes. Com ela vem a própria emoção que
sentimos quando os vimos no cinema.
Pelos olhos de Morricone, ouvimos e vemos a nossa própria emoção.
Miguel Forlin é crítico de cinema e colaborador de diversas publicações na área.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, pesquisador de cinema e consultor de comunicação.
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