Região
carece de energia elétrica, enquanto tem grandes hidrelétricas; soma-se
ao ambiente crítico o aumento nas queimadas nas áreas de floresta
Quando
se pensa em infraestrutura, se imagina desenvolvimento socioeconômico,
avanço no acesso a serviços básicos e mobilidade. Na Amazônia, no
entanto, não é isso que o termo representa: a infraestrutura que existe
na região serve a alguns poucos em detrimento da maioria da população. E
frequentemente vem acompanhada da violação de direitos e exclusão
social. Esta é a conclusão da mesa-redonda “Infraestrutura sustentável
na Amazônia: caminhos para a transição energética e ecológica”, ocorrida
na 29ª Conferência das Partes (COP 29) da Convenção-Quadro das Nações
Unidas para Mudanças Climáticas, em Baku, Azerbaijão, e contou com a
participação do IEMA. Ela foi promovida pela organização Uma Gota no
Oceano.
Cleidiane
Vieira, que faz parte da coordenação regional do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) no Pará, foi firme em expor esta
realidade: “O desenvolvimento sempre vem com uma condicionante". Ela
contou que um dos casos mais recentes foi a construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, localizada na bacia do Rio Xingu próxima ao
município de Altamira, no norte do estado. O acesso a serviços de
saneamento básico, conta ela, só seria dado a Altamira depois da
construção da hidrelétrica. “É uma infraestrutura sempre pensada de fora
para fora. A região amazônica nunca foi considerada capaz de pensar seu
próprio desenvolvimento", observa.
Belo Monte, que cortou o fluxo do Rio Xingu em mais de 80% e reduziu a reprodução de peixes, aumentando o risco de extinção
de espécies endêmicas, encareceu ao invés de baratear a energia
elétrica em Altamira. “As hidrelétricas foram feitas para atender a
demanda de geração de energia do país, nunca para atender a demanda dos
povos. Porque, se fosse assim, não haveria uma família na Amazônia sem
energia. Mas essa não é a realidade", diz Vieira.
Estudos
confirmam a experiência de Vieira. Construída entre 2011 e 2016, Belo
Monte é a segunda maior usina hidrelétrica em capacidade instalada no
Brasil, atrás apenas de Itaipu. Em um artigo publicado em fevereiro deste ano na revista Energy Research & Social Science,
pesquisadores das universidades de Michigan, nos Estados Unidos, e de
Campinas lembram que a maioria da energia produzida por Belo Monte vai
para o sudeste brasileiro. Eles dizem que “parece contra intuitivo que,
após a construção de uma das maiores hidrelétricas do mundo, o custo por
kilowatt-hora para residentes é maior do que era antes da construção da
barragem” — o que também acontece com moradores próximos às usinas de
Jirau e Santo Antônio, construídas às margens do Rio Madeira perto de
Porto Velho, em Rondônia.
Alessandra
Munduruku, liderança Munduruku no Pará e presidente da Associação
Pariri, foi ainda mais contundente em resumir o cenário: “No Pará,
pagamos a energia mais cara do país, mesmo com hidrelétricas e os
‘linhões’ passando por nossas comunidades. A Amazônia está sendo
saqueada sem retorno para os amazônidas”.
Insegurança energética e alimentar são rotina na vizinhança de grandes hidrelétricas na Amazônia.
Além
dos impactos socioambientais, o problema com essas usinas é que sua
própria razão de ser está sendo posta em xeque com as mudanças
climáticas. Com a mudança no padrão de chuvas e secas mais fortes e
recorrentes à frente, a produção de energia hidrelétrica entra em
território desconhecido. “A boa notícia é que vemos um crescimento
direto de energia solar e eólica nos últimos 15 anos", diz Ricardo
Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente
(IEMA). Este crescimento é essencial para que o Brasil — e a Região
Norte em especial — tenha melhora nos indicadores socioeconômicos. A
transição energética, ele ressalta, “passa pela transmissão energética".
A
principal lógica por trás do argumento de Baitelo está nos indicadores
sociais. “Quando falamos em escolas públicas sem acesso à energia: se
somarmos Pará, Amazonas e Acre, nós temos 74% delas sem energia — ou
mais de três mil escolas". Enfrentam situação similar as unidades
básicas de saúde da região — mais de mil UBS na Amazônia não têm acesso à
eletricidade. “Não dá para imaginar como é lidar com vacinas e outros
insumos que precisam ser refrigerados".
Pensar
na melhoria da infraestrutura de energia, segundo Baitelo, não tem a
ver com geração e distribuição nos moldes que conhecemos hoje. Tem a ver
com o conceito de energia plena, “ou seja, [fornecer energia] de acordo
com as visões de cada beneficiário, o que ele precisa. Os indígenas têm
as suas necessidades, os quilombolas têm outras, os extrativistas têm
outras ainda". O importante, diz ele, será estimular uma economia que
atenda às necessidades dos diferentes grupos locais que ajude a
preservar a floresta e subverter a lógica atual de infraestrutura
vigente na Amazônia.
Os
indígenas são um grupo crucial nessa virada. “Sim, nós somos parte
dessa solução, mas se esta variação no clima continuar ocorrendo — no
sentido de que há muita seca e muita cheia, por exemplo — sabemos que
não temos o poder de fazer o rio se encher novamente de água. Precisamos
realmente começar a nos planejar para enfrentar diretamente a mudança
climática", diz Sinéia do Vale, liderança indígena do povo Wapichana em
Roraima e co-presidente da bancada Indígena na COP-29.
Para
que ocorra uma transição energética justa, que garanta o direito dos
povos indígenas, é preciso que haja um diálogo informado com as
comunidades. Elas devem ter o direito de tomar decisões informadas
baseadas em suas necessidades e autonomia, ela frisa. É preciso de
infraestrutura para a Amazônia. Com ela, ter conexão à internet, acessar
médicos, monitorar o desmatamento.
Para
piorar o problema, os eventos climáticos estão afetando a Amazônia, uma
região que já carecia de recursos básicos. “Com as mudanças climáticas,
temos tido um aumento muito grande da área de floresta em pé afetada
pelos incêndios florestais”, ressaltou Ane Alencar, diretora de ciência
do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). De janeiro a
outubro, 27 milhões de hectares foram queimados no Brasil como um todo,
sendo 55% só na Amazônia. Foram sete milhões de floresta queimada,
somando mais de nove milhões de hectares. “Isso não é comum para a
Amazônia. Comum era ter área queimada de pastagem, agropecuária, com
fogo sendo colocado por pessoas, nestes casos”, destaca Alencar.
Isso,
pelo que parece, ainda não está perto de acontecer. “São hidrovias,
hidrelétricas, portos e ferrovias que destroem a Amazônia e a vida dos
povos tradicionais. Só no Tapajós, há 41 portos planejados, 27 já em
operação, e apenas cinco licenciados", observa Alessandra Munduruku. Os
portos e rodovias, lembra ela, têm por finalidade o transporte de milho e
soja, e não para a circulação de pessoas, bens e serviços para as
comunidades locais.
Enquanto
esta lógica não mudar, o real potencial de desenvolvimento
socioambiental da Amazônia vai permanecer estagnado. Como lembra
Cleidiane Vieira, é impossível pensar em solução para crise climática
sem envolver quem as populações que mais sofrem: “nada para a Amazônia
sem os amazônidas”.
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