Ricardo Viveiros*
Livros são um prazer. Além do conteúdo, as conexões que provocam com outras obras me gratificam. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal,
de Pierre Dardot e Christian Laval, surpreendeu pela quantidade de
referências que me vieram à mente. Como em um caleidoscópio, convidei
para “conversar” Friedrich August von Hayek, John Maynard Keynes,
Fernando Henrique Cardoso, Michel Foucault, Karl Marx e representantes
da Escola de Chicago.
Crítico
que sou, a ideia de que há algo sensato em uma sociedade liberal não me
convence. O colonialismo foi uma dominação capitalista. Parafraseando
Caetano Veloso, “cantarolei como são lindos os neoliberais, mas tudo é
muito mais” (Podres poderes, 1984). Fique claro que a "nova
razão" dos autores está associada ao novo sentido e à pretensão
holística do neoliberalismo. A dominação sobre a economia é só o ponto
de partida. Dardot e Laval utilizam complexas análises históricas e
sociais, além de outras psicanalíticas, para fundamentar a obra. Talvez,
o pensamento que melhor sintetize o neoliberalismo esteja na frase da
ex-primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, "A economia é o método.
O objetivo é mudar a alma.". A ideia assombra, mas faz sentido.
Para
os detratores de ideologias, sejam elas quais forem, os intelectuais
recorrem à interpretação vanguardista com a precisa fundamentação
filosófica de Michel Foucault e Karl Marx, entre outros, com o propósito
de revelar o mito neoliberal da objetividade econômica. Neoliberalismo é
ideologia, sim, e das mais complexas! A psicanálise é outra ferramenta
indispensável para elucidar o problema. Muitos fantasmas e cobranças que
ocupam nossa mente vêm dessa "nova razão". Corpo perfeito, família
perfeita e profissional perfeito são idealizações imaginárias que
alimentamos sem cuidado. A alienação e a distância que se toma da
emancipação humana, proposta por Marx, preocupa.
Na
política, a deterioração da democracia parece algo natural nessa nova
diretriz. Ao neoliberalismo não importam liberdade e justiça, exceto se
estiverem em favor do sistema de dominação e lucro. Políticos, como o
estadunidense Donald Trump, conseguem manter a popularidade e podem
voltar à Presidência, mesmo após a prática de criminosos atos
antidemocráticos. Ainda que a economia seja um pilar importante da
avaliação dos cidadãos, questões como xenofobia, discriminação,
violência e outras são ignoradas dentro da cultura neoliberal. Está
aberto o caminho para discursos totalitários.
Ao
contrário do interesse da sociedade, está no consenso que o controle da
coisa pública pelo setor privado é a melhor opção. Ou seja, o cidadão
prefere não fazer parte da administração dos seus impostos. Assim, além
de atestar a própria incapacidade de participação na vida do país, o
eleitor afirma que o setor privado — que objetiva o lucro — está mais
imbuído de melhores intenções do que o gestor público. A dominação não é
só econômica, a "alma" já está comprometida.
Talvez,
desenvolvimentistas, como Hayek e Keynes, não tivessem a dimensão do
que se tornaria o neoliberalismo. O combate às teorias que privilegiavam
iniciativas coletivas e a valorização de ações individuais não acabaria
em uma cultura de dominação tão ampla, até psiquiátrica. Isso não
estava no horizonte dos representantes da Escola de Chicago, eles
pensavam em melhorar a economia. Menos ainda, em Fernando Henrique
Cardoso e sua “Teoria da Dependência”, que confrontada com o seu
exercício do poder revela a luta entre o pensador e o político. Mas de
alguma forma, todas essas teses compõem a base do neoliberalismo real.
A
dinâmica da economia funciona com uma complexidade que não é vista pela
maioria das pessoas. Ações nas bolsas de valores são movidas ao sabor
das especulações. Apenas a minoria consegue avaliar quanto o sistema é
invasivo no seu cotidiano. Os que têm boas interpretações da realidade
devem contribuir para a construção da liberdade mais plena de todos nós.
Nesse sentido, o livro de Dardot e Laval traz a lição: a consciência de
que vida humana e suas relações devem estar acima de qualquer interesse
econômico.
*Ricardo Viveiros, jornalista, professor e escritor, é doutor em Educação, Arte e História da Cultura; autor, entre outros, de A vila que Descobriu o Brasil (Geração, 2014), Justiça seja feita (Sesi-SP, 2017) e Memórias de um tempo obscuro (Contexto, 2023).
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