MEDIÇÃO DE TERRA

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quarta-feira, 3 de maio de 2023

Presidencialismo de trincheira

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Na Brasília atual, nem o governo avança com sua agenda legislativa nem os parlamentares seguem com a sua. Leonardo Barreto para a Crusoé:


Hoje há uma situação de empate em Brasília. Nem o governo avança com sua agenda legislativa, nem os parlamentares seguem com a sua. Uma boa metáfora para se referir a esse impasse é “guerra de trincheiras”, que ocorreu durante a Primeira Guerra e na qual franceses, alemães, belgas e ingleses ficaram frente a frente por dois anos no front ocidental com muitas batalhas, muitas baixas e pouco ou nenhum avanço de parte a parte. No Europa, assim como na Praça dos Três Poderes, ninguém tem capacidade de se sobrepor ao outro.

A primeira coisa a se perguntar depois desse parágrafo bélico é o motivo pelo qual a relação entre Legislativo e Executivo é analisada em termos de conflito e competição. A resposta se relaciona a uma diferença de visões sobre a quem cabe o papel de formular políticas públicas.

Lula se orienta pelo modelo de presidencialismo de coalizão, apelidado também de governo de cooptação, no qual o Planalto desenha as soluções e o Congresso as ratifica. As moedas de troca são emendas, cargos e poder. Para funcionar, o Executivo tem que deter a discricionariedade sobre o Orçamento aprovado pelos parlamentares, exercendo um irresistível poder de barganha.

Mas, mesmo antes de o PT sair do poder em 2016, o Congresso já vinha virando esse jogo. Foi durante o governo de Dilma Rousseff que deputados e senadores aprovaram, por exemplo, o Orçamento Impositivo, no qual parte das despesas com emendas passou a ter que ser obrigatoriamente realizada.

A primazia do Legislativo atingiu seu auge durante o período Jair Bolsonaro. Ainda no primeiro ano do antigo governo, quando o Planalto se negou a montar uma coalizão, o Congresso se viu paralisado. Mas, como não há vazio de poder, Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado) articularam a transferência do mecanismo de barganha do Orçamento para seus entornos. A emendas de relator (RP9), distribuídas discricionariamente pelos presidentes, somado à fragilidade de Bolsonaro, fez emergir um modelo de presidencialismo no qual, em vez do Congresso aderir ao Executivo, era o governo que corria atrás dos parlamentares. O país passou a viver um parlamentarismo de fato.

Quando Lula venceu a eleição, era fácil vislumbrar que haveria um ponto de distensão à frente, quando haveria necessidade de negociar especialmente com Arthur Lira, que consolidou e multiplicou o modelo RP9, sobre o caminho que o Congresso seguiria. Antecipando o conflito, ambos bateram boca pelas redes sociais, chamando-se um ao outro de “imperador”.

O fato é que Lula entrou no jogo em desvantagem, pois lidaria com um Congresso de perfil liberal na economia e conservador nos costumes e que foi o autor efetivo de uma boa parte dos marcos regulatórios que o petista prometeu desmontar. Mas Lira não sabia que um movimento que abalaria sua dominância. O STF declarou inconstitucional as RP9 para ajudar o Planalto a recuperar controle do processo decisório nacional.

Em reação, Lira e os deputados trabalharam para manter a obrigatoriedade da execução das emendas e o montante dedicado a elas. Ao fim, Lula não retomou o controle do orçamento como em outros períodos, mas Lira ficou desfalcado e, apesar de ter vencido a reeleição com imensa maioria, viu seu poder de gravidade cair sensivelmente. Prova disso foi a redivisão das bancadas da Câmara via fragmentação do Centrão em novos blocos. O enfraquecimento do eixo central levou à divisão interna da antiga coesão.

A partir daí, o ponto de partida para traçar cenários é de que o Congresso Nacional é quem tem o tempo a seu favor. Afinal, se o país entrar em crise, a conta chega primeiro no Executivo. Por isso, o interesse maior de sair desse impasse sempre será de Lula.

Num primeiro cenário, Lula tenta ampliar sua base ainda por meio de distribuição de cargos, arcando com custos crescentes e ainda de resultados imprevisíveis. O jogo permanece mais ou menos como está e evolui perigosamente para um ponto onde a paralisia vira uma crise de governabilidade.

Um segundo é Lula entregar a Arthur Lira e Rodrigo Pacheco as chaves do cofre, delegar a eles a distribuição de recursos e trazê-los para a etapa de formulação de políticas públicas. Essa é a sugestão que o líder do PT na Câmara, deputado Zeca Dirceu, tem feito ao Planalto. Nesse caso, a dificuldade é a profunda falta de confiança entre Lula e Lira, além de uma aparente rendição do governo frente aos olhões dos seus eleitores.

Há também um terceiro cenário. Nesse, é Lira quem busca a ofensiva com uma coordenação entre líderes para verticalizar a Casa, mas a partir do colegiado. Agindo articuladamente, passa a ter de novo controle sobre o Orçamento e a possibilidade de impor uma pauta ao governo, revivendo a sensação de um governo parlamentar.

Na Primeira Guerra, os dois lados estavam extenuados e se mantiveram de pé apenas porque, principalmente no caso alemão, desistir significaria, como de fato aconteceu, a queda do regime e a substituição das elites governantes. No “presidencialismo de trincheira”, o empate também ameaça cabeças, especialmente a do Executivo, cada vez mais pressionado por indicadores ruins e pilhas de intenções que ele não tem coragem de mandar para o campo. Para o Congresso, o que pode acontecer, e já está ocorrendo, é Lira e Pacheco deixarem de controlar suas próprias sucessões e enfrentar dificuldades em votações como não estavam acostumados.

Curioso avaliar que a ação do STF de desarmar o Legislativo talvez não tivesse a intenção de criar ingovernabilidade, mas foi exatamente o que conseguiu.

Leonardo Barreto é cientista político e diretor VectorRelgov.com.br
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