BLOG ORLANDO TAMBOSI
Os casos listados não configuram mera exceção. Qualquer um com conhecimento jurídico e boa-fé que leia as decisões já publicadas do Inquérito 4.781 (como é oficialmente chamado) frequentemente se verá espantado com a relativa inocuidade das condutas descritas. Hugo Freitas Reis para a Gazeta do Povo:
O
Inquérito das Fake News (instaurado em 2019 para investigar
manifestações contra ministros do STF e conduzido pelo ministro
Alexandre de Moraes) já dura mais de quatro anos e não dá sinais de fim.
Artigos publicados nesta Gazeta do Povo já deram conta das múltiplas ilegalidades
do inquérito. Não se trata de ilegalidades comuns em processos
judiciais, mas sim de aberrações singulares, como a concentração das
funções de investigador, acusador, julgador e vítima; ou a pretensão de
reunir sob o mesmo grupo de julgadores um rol infinito de crimes
cometidos pelas mais variadas pessoas em todo o país e até no
estrangeiro, por alegação de conexão entre os crimes, mas sem qualquer
conexão verdadeira entre eles, exceto o fato de os próprios julgadores
figurarem como vítimas. Ou, em alguns casos, nem mesmo isto.
Mas,
com frequência, nem mesmo estes fatos extremos têm sido capazes de
persuadir os observadores: grande parte da opinião publicada no Brasil
tem apoiado o inquérito, mesmo estando escancarado o seu caráter
antijurídico. O raciocínio aparente é o de que os fins justificam os
meios, e a finalidade da lei e da Justiça seria a de punir criminosos;
função que, ainda que por vias tortas — e como são tortas! —, estaria
sendo cumprida pelo implacável ministro Alexandre de Moraes.
Mas o Inquérito das Fake News se destina mesmo a punir criminosos?
Eis
uma rememoração exemplificativa de pessoas e entidades que se tornaram
alvos do Inquérito das Fake News por críticas ao STF ou a seus
ministros.
O crime de desabafo
Em
2018, o advogado Cristiano Caiado de Acioli, que compartilhava o mesmo
avião comercial que o ministro Ricardo Lewandowski, disse a ele: “O
Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando
eu vejo vocês.” O caso recebeu muita atenção nos meios de comunicação,
mas não pela fala de Acioli, e sim pela reação do ministro Lewandowski,
que ameaçou o advogado de prisão e chamou a Polícia Federal. Na chegada
do voo a Brasília, o advogado foi detido para prestar esclarecimentos em
delegacia, sendo instaurado inquérito policial para apurar suposto
crime de desacato.
Todavia,
o Ministério Público não enxergou crime na conduta, pedindo o
arquivamento do inquérito, e o juiz competente de primeira instância
concordou com o pedido, declarando que Acioli estava em sua liberdade de
expressão.
Insatisfeito,
o STF atropelou a decisão do Judiciário e, em 11 de outubro de 2019,
incluiu Acioli no Inquérito das Fake News. Segundo nota do gabinete de
Lewandowski, Acioli teria praticado “um ato de injúria” ao STF — muito
embora, no direito brasileiro, pessoas jurídicas, mesmo as privadas, e
com muito mais razão as públicas, como o STF, não podem ser vítimas de
crimes contra a honra.
O crime de reportagem
Segundo
a imprensa, a causa imediata da instauração do Inquérito das Fake News
teria sido um artigo publicado por Diogo Castor de Mattos, procurador da
força-tarefa da Lava Jato, no veículo O Antagonista, em 9 de março de
2019, no qual chamava de “o mais novo golpe à Lava Jato” uma decisão
iminente do tribunal que implicaria a transferência de muitos processos
por corrupção para a Justiça Eleitoral. O inquérito foi instaurado cinco
dias depois da publicação artigo. Mas a primeira medida tomada no
inquérito só ocorreu semanas depois, em reação a uma reportagem
publicada em outro veículo do mesmo grupo (revista Crusoé), intitulada
“O amigo do amigo de meu pai”. A reportagem revelava delação do
empresário Marcelo Odebrecht (que estava em prisão domiciliar) em que
ele afirmava ter usado habitualmente o codinome do título para
referir-se ao então advogado-geral da União, depois tornado ministro do
STF, Dias Toffoli.
O
ministro Alexandre de Moraes afirmou que o comportamento da revista
Crusoé tinha “contornos antidemocráticos” e ordenou a retirada da
reportagem do ar, a abstenção de publicação de novas postagens sobre o
assunto, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, e o depoimento dos
jornalistas à Polícia Federal.
O crime de hashtag
Em
2020, o inquérito se utilizou de “relatório técnico pericial” que
consistiu em uso da ferramenta pública de busca do Twitter para
visualizar tuítes postados em determinado período. Os termos buscados
foram palavras pouco elogiosas envolvendo o STF ou seus ministros:
#impeachmentgilmarmendes, #STFVergonhaNacional, #STFEscritoriodocrime,
#hienasdetoga, #forastf, #lavatoga, STF, SUPREMO, IMPEACHMENT, toffoli e
gilmar. Entre os inúmeros usuários do Twitter que tinham utilizado
estes termos, verificou-se quais seguiam quais. Por meio desta técnica
de eliminação, chegou-se a certa quantidade de perfis que eram seguidos
por grande número de pessoas e que, em larga medida, seguiam-se entre
si.
Uma
dessas pessoas foi Bárbara Destefani, dona de casa que tinha
conquistado grande número de seguidores mantendo canal de YouTube
denominado Te Atualizei, gravado em sua própria casa, no qual exibia
manchetes jornalísticas recentes e as comentava.
Para
o azar de Bárbara, no âmbito do Inquérito das Fake News, o fato de
seguir e ser seguida por outros perfis que tinham utilizado as mesmas
hashtags foi considerado indício suficiente de que os envolvidos
integravam uma organização criminosa. Organização esta que, segundo o
STF, teria como objetivo “atacar integrantes de instituições públicas”,
“gerar animosidade dentro da sociedade brasileira”, “promover o
descrédito dos poderes da República”, “além de outros crimes”. (Não são
crimes.)
Em
consequência, Bárbara sofreu operação de busca e apreensão na casa onde
morava com o seu filho, com a Polícia Federal revirando seus pertences à
procura de elementos de prova de seu envolvimento em organização
criminosa que estivesse por trás dos seus vídeos. Subsequentemente, o
ministro Luis Felipe Salomão, do TSE, ordenou a desmonetização em bloco
de vários canais investigados no Inquérito das Fake News, entre os quais
estava o de Bárbara, alegando que eram propagadores de desinformação —
mas sem citar qualquer artigo de lei que autorizasse a medida, e sem
individualizar qualquer conduta da youtuber, para quem a medida foi
dura, visto que tinha na monetização do canal a sua principal fonte de
renda. Posteriormente, em decisão sigilosa, foi determinado o bloqueio
completo de todos os perfis de Bárbara em território brasileiro.
* * *
Os
casos listados não configuram mera exceção. Qualquer um com
conhecimento jurídico e boa-fé que leia as decisões já publicadas do
Inquérito 4.781 (como é oficialmente chamado) frequentemente se verá
espantado com a relativa inocuidade das condutas descritas, tratadas, no
entanto como se fossem crimes de gravidade fora do comum (mas,
curiosamente, quase sempre sem se dizer qual seria, em tese, o crime
cometido — talvez porque não exista, em muitos casos).
O
espanto diminui quando se recorda que as funções de investigar, acusar e
julgar estão sendo aqui ilegalmente acumuladas nas mãos das próprias
vítimas — que, como lembrado no último artigo, têm um forte viés de
autosserviço. Tendo isto em vista, já não parece tão espantoso assim que
violações menores sejam tratadas sob uma lupa, e que seja considerado
justificado rasgar todo o ordenamento jurídico para persegui-las.
O
espanto que continua intacto, no entanto, é que uma parcela tão grande
do restante da opinião brasileira — que não seria, em tese, parte
interessada — aplauda que esses atos sejam perpetrados contra seus
concidadãos.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi

Nenhum comentário:
Postar um comentário