BLOG ORLANDO TAMBOSI
A crise entre os católicos e o Estado Novo ficou também a dever-se à desilusão de uma ala de católicos corporativistas com o corporativismo português. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
João
Salgueiro está no coração da fracassada tentativa de transição do
autoritarismo do Estado Novo para um regime homologável com as
democracias da Europa Ocidental. Participou nela com lucidez,
consciência e coerência, avaliou as suas debilidades e não se deve ter
surpreendido muito com o seu fracasso.
Fez
parte daquilo a que os franceses chamam grands commis d’État, a classe
de altos funcionários públicos, de tecnocratas competentes, que, aqui,
Salazar privilegiou, sobretudo na fase final do Estado Novo, apesar das
críticas e da mágoa dos elementos mais ideológicos do Regime. O
Secretariado Técnico do Plano da Presidência do Conselho de Ministros, o
“ministério do Plano”, para onde Salgueiro foi nomeado em 1965 ainda em
plena vigência do salazarismo com Salazar, era um lugar-chave.
Ao
contrário da visão maniqueísta do “monolitismo da Ditadura”, servida
pela extrema-esquerda e até por alguns historiadores da direita da
esquerda, o antigo regime tinha e sempre teve correntes, facções,
sensibilidades, grupos de pressão. Tal como o franquismo espanhol. Só
que, aqui, as correntes e os grupos eram menos ideológicos, menos
doutrinários, menos políticos e mais pessoais.
Enquanto
no tardo-franquismo dos anos 60 se perfilavam e competiam falangistas
justicialistas, estatistas, aberturistas liberalizantes, monárquicos
carlistas e afonsistas, católicos do Opus Dei e até franquistas stricto
sensu, em Portugal era diferente. Aqui, as sensibilidades eram menos
ideológicas e agrupavam-se mais à volta de pessoas, de figuras
influentes, geralmente de ministros ou ex-ministros. Assim, havia os
marcelistas republicanos e uma linha mais monárquica à volta de Fernando
dos Santos Costa; os próximos de Luís Supico Pinto e os ligados ao seu
rival José Soares da Fonseca, figuras de proa do Regime, um Presidente
da Câmara Corporativa, outro da Assembleia Nacional. E debatiam-se
linhas de interesses e havia guerras, como a que opunha os defensores da
agricultura, a “miseranda agricultura” como lhe chamavam, aos
partidários da industrialização.
Os católicos: convergências e divergências
E,
claro, havia os católicos. Católicos que tinham alguma influência no
Regime, até pelo mau bocado passado na Primeira República. Foi dos
católicos que vieram, depois, várias dissidências, umas por razões
espirituais e ideológicas, como a crítica a uma certa indiferença social
perante a pobreza e marginalidade das camadas trabalhadoras, a
incerteza do trabalho no Alentejo e as desigualdades sociais reinantes.
Havia também as repercussões do Concílio Vaticano II, depois da
transição de Pio XII, grande admirador de Salazar, para João XXIII e
Paulo VI, que já não liam pelo mesmo catecismo.
Havia
também casos pessoais, como o do bispo do Porto, D. António Ferreira
Gomes, que escrevera uma carta a Salazar criticando alguns aspectos do
Estado Novo, embora num tom de respeito e até de admiração pelo então
Presidente do Conselho. A carta, porém, desencadeou reacções e respostas
atrabiliárias por parte de fundamentalistas do salazarismo que levaram a
uma escalada e à ruptura de D. António.
Os
católicos dissidentes, então chamados “progressistas”, representavam
uma linha crítica do Regime, com o peso que, durante e depois do
Concílio Vaticano II, tinha o Aggiornamento. Além disso, muitos vinham,
socialmente, da média e alta burguesia de Lisboa e do Porto, de famílias
próximas do Regime; famílias abastadas, ou “conhecidas”, isto é,
santuários onde a repressão policial não chegava. Com isto não pretendo
insinuar que não fossem pessoas de convicções e que não estivessem
dispostas a correr riscos por elas, quero apenas dizer que, nas
condições do tempo, os riscos eram e foram, de facto, mínimos.
João
Salgueiro, embora próximo por afinidades intelectuais e geracionais de
alguns destes protagonistas – tinha sido Presidente da JUC e frequentava
essas tertúlias –, teve um perfil mais técnico, mais de estudioso da
história e da economia portuguesa, mais centrado nas razões do atraso
económico e social português e nas formas de o ultrapassar. Assim,
identificava-se mais com o grupo dos chamados “tecno-católicos” ou
“sociais-desenvolvimentistas” do que com os activistas de O Tempo e o
Modo.
Para
julgar a transição fracassada é tentadora a comparação com a solução
espanhola, onde a transição aconteceu por determinação de Franco que,
estando à frente de um país que passara por uma guerra civil sangrenta e
violenta de parte a parte e por um regime que a vencera, deixara tudo
“atado e bem atado” através da Monarquia Constitucional que levaria à
democracia. Democracia que ele sabia inevitável depois do
desaparecimento de Carrero Blanco. À partida, parecia mais fácil fazer a
transição em Portugal do que em Espanha. Mas não foi.
Em Portugal, a solução monárquica – que Salazar já afastara num discurso de 1932 – acabou por não se impôr.
Marcelo
Caetano, no famoso “discurso de Coimbra” que lhe valeria a hostilidade
dos monárquicos, lembrara que “Salazar não era imortal”, mas que o
“presidencialismo bicéfalo” da Constituição de 1933, permitia e garantia
soluções: Salazar podia passar a Presidente da República e, na chefia
do Estado, guiar a transição; presumindo-se que ele, Marcelo Caetano,
ficasse como chefe do Governo.
Mas
Salazar, não só afastara a solução monárquica, como também nunca
contemplara a restauração democrática. A experiência da Primeira
República, com a violência, a instabilidade e a perseguição à Igreja,
aos monárquicos e até aos republicanos conservadores, não o predispunham
para um regresso a um regime, que, naquelas circunstâncias históricas,
considerava prejudicial para o interesse nacional.
Mesmo
assim, no sentido da transição, apareceram, no final dos anos 50, os
“liberais”, vindos da direita sociológica. Juntaram-se em algumas
editoras, no cineclubismo, em O Tempo e o Modo ou no Encontro, jornal da
JUC. Simbolicamente, nas eleições de 58, assinaram manifestos
pró-oposição e procuraram quebrar a ligação católica ao Estado Novo.
Constituíram assim uma nova e terceira via na oposição, onde já estavam,
bem poderosos e articulados, os comunistas; e, em decadência mas ainda
com peso, os democratas da Primeira República. Os chamados “católicos
progressistas” fizeram parte dessa terceira via.
João
Salgueiro estava então mais na colaboração técnica ou tecnocrática, na
alta Administração Pública. Nesse tempo, no recrutamento de quadros, já
não se exigia qualquer lealdade política, e muito menos ideológica. Por
isso, não faltou quem, não sendo propriamente salazarista ou sequer “de
direita”, participasse na gestão da Administração do Estado.
A
crise entre os católicos e o Estado Novo ficou também a dever-se à
desilusão de uma ala de católicos corporativistas (Pires Cardoso,
Adérito Sedas Nunes e o próprio D. António Ferreira Gomes) com o
corporativismo português, que tinham visto como uma possível terceira
via entre o capitalismo e o socialismo. Luís Salgado de Matos, num
interessante artigo na Análise Social – “O 25 de Abril foi possível
porque o Estado Novo perdeu o apoio do catolicismo” – historiou essa
crise.
Todos
acharam, com razão, que a terceira via falhara e que os ideais
justicialistas do corporativismo cristão – no modelo nacional
autoritário do salazarismo – tinham ficado no tinteiro. E que, como
escrevera o bispo do Porto na famosa carta a Salazar o “corporativismo
português” não passara, afinal, “um meio de espoliar os operários do
direito natural de associação”.
A Guerra e o fim das terceiras vias
De
qualquer modo, depois de 1945, com a associação, em termos de opinião
pública, das “terceiras vias” corporativas ou nacionais-sindicalistas
com o fascismo italiano e do fascismo italiano com o hitlerismo, estas
alternativas estavam feridas de morte. A confrontação era agora entre o
capitalismo democrático ocidental e o modelo comunista. Sem terceiras
vias possíveis, embora pudessem figurar na Constituição e nas leis.
Entretanto,
a Guerra Fria, perante o inimigo principal soviético, permitiu a
sobrevivência dos autoritarismos peninsulares; daí veio, dentro do
Regime, o reforço das linhas desenvolvimentistas e tecnocráticas. Mesmo a
nível ministerial, personalidades como Rafael Duque, Ferreira Dias ou
Daniel Barbosa tinham esse perfil.
Embora
Salazar, por razões políticas, defendesse um certo ruralismo cultural
(lembre-se a exaltação do campo no Livro da Terceira Classe), a verdade é
que compreendia as necessidades da sociedade e se adaptava. Tanto que
acabara por aceitar o Plano Marshall, com consequências estruturais na
orgânica do poder, nomeadamente com os Planos de Fomento de 1953. A
partir daqui, é na tecnoburocracia das estruturas económico-financeiras
ligadas ao Plano e na participação em organizações europeias, como a
EFTA, que os chamados “tecnocatólicos” vão encontrar influência. Marcelo
Caetano, ministro da Presidência, no poder ou na sombra do poder, vai
ser, nesses anos, a figura de referência na integração e protecção dos
jovens tecnocratas – que, entretanto, têm opções político-ideológicas
diversas.
João
Salgueiro acompanha todo este movimento e já no marcelismo, em 1969, é
nomeado Secretário de Estado do Planeamento Económico; em 1970, está
entre os fundadores da SEDES, o que o leva, por incompatibilidade e por
escolha, a abandonar o Governo.
O dilema africano
Porém,
a transição institucional tinha uma condicionante que não era
ultrapassável, que pendia desde os anos 50 sobre o destino do país e que
determinaria o seu futuro. Depois de 45, os europeus tinham iniciado a
liquidação dos impérios ultramarinos. Salazar, que não era um
“colonial”, como os homens da Primeira República, achava, entretanto,
que, sem Império, sem o Ultramar, o país perderia a independência. E
pensava que não tínhamos capacidade para soluções de neocolonialismo, ao
modo dos franceses e dos ingleses, ou seja, achava que, perdida a
soberania política, perdia-se tudo.
O
início da guerra de África veio prolongar a vida do Estado Novo, já
que, em 1961, parte da oposição republicana, na tradição patriótica da
resistência ao Ultimato e da intervenção na Grande Guerra, apoiaria
Salazar.
Os
liberais e parte dos católicos progressistas escolhiam, aqui, o outro
lado da barricada. Pela mesma razão que alguns de nós, pela questão
ultramarina, viemos para a Direita, outros, mais conservadores, foram
atirados para a Esquerda.
João
Salgueiro esteve sempre no coração destes debates, mas de um modo
discreto, procurando equilibrar valores, princípios e razões entre um
sentido de responsabilidade e de interesse nacional que exigia
prudência, e as exigências do seu europeísmo e liberalismo de convicção.
Ficou numa espécie de terra de ninguém, que também não era cómoda.
Conheci-o
e demo-nos bem, muito depois de todos estes problemas e dramas
acabados, quando esteve Presidente do Banco de Fomento, da Caixa Geral
de Depósitos e da Associação Portuguesa de Bancos. Além de falarmos de
alguns projectos ligados ao espaço lusófono – onde Salazar achava que
não teríamos influência alguma, perdida a soberania dos tambores e das
bandeiras – conversávamos também como sobreviventes de tribos inimigas, a
quem o tempo tinha trazido a filosofia conciliadora das ocasiões
perdidas.
João
Salgueiro era lúcido, tinha sentido de humor e tinha a consciência de
que, pela força das coisas, talvez não houvesse alternativa ao que
acontecera. Na sua racionalidade tecno-desenvolvimentista, na sua
análise objectiva do atraso português, no modo sarcástico como olhava
algumas figuras de Abril e as suas acrobacias e paranoias, mantinha um
sentido ético de bem comum e preocupava-se com o destino de Portugal e
com o risco, a longo prazo e por más escolhas, de virmos a perder a
independência: “Se acomodarmos tudo e se nos subordinarmos a tudo o que
vem de fora, ponham a independência nacional de fora” – disse numa
entrevista, em Maio de 2016, comentando a crise bancária, os resgates
dos Bancos à custa dos contribuintes e a perda de recursos financeiros e
económicos dos portugueses.
Era
particularmente crítico do modo como os governos de Lisboa tinham
embarcado no projecto europeu para o sistema financeiro: “a União
Bancária é um aborto. É um escândalo. É um desastre.”, dizia. Para quem
estava habituado ao seu modo reservado de se pronunciar, estas palavras
dariam a medida do que pensava sobre o assunto.
Morreu
no fim de semana de 18-19 de Fevereiro e foi a enterrar na Quarta-feira
de Cinzas. Aconteceu-me com ele o que já me aconteceu com outros amigos
e conhecidos e até com inimigos: depois de desencontros e divergências,
a vida, o estado a que tudo chegou, outras afinidades e o respeito por
quem viveu com coerência e verdade as suas convicções fizeram com que
nos encontrássemos, neste tempo de pequenas e médias batalhas por pouca
coisa, em terra de ninguém.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi

Nenhum comentário:
Postar um comentário