A democracia liberal funda-se na concorrência parlamentar e civilizada entre direita e esquerda democráticas, não na ‘guerra civil de classes’ entre direita e esquerda. Artigo do professor João Carlos Espada para o Observador:
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Há precisamente um mês, a 9 de Abril, foi publicado na América um livro
que vem dominando o debate público educado na imprensa, rádio e
televisão. Chama-se The Right: The Hundred Year War for American
Conservatism (Basic Books); o autor é Mathew Continetti, ‘senior fellow’
do muito distinto American Enterprise Institute for Public Policy
Research, com sede em Washington, DC. Não é impossível que esse debate
venha a chegar à Europa — e eu certamente acredito que seria muito
desejável que pudesse chegar cá.
Apesar
de o título da obra começar pelo singular ‘The Right’, Mathew
Continetti enfatiza que sempre houve na América várias ‘direitas’ no
interior daquilo que é por vezes designado por ‘a Direita’. E recorda
que, talvez em boa parte por isso mesmo, esse termo ‘a Direita’ foi em
regra particularmente usado e preferido por uma certa esquerda — em
regra, a chamada esquerda radical, que vê o debate político como luta de
classes, entre ‘o povo contra as elites’ e entre ‘a esquerda contra a
direita’.
Um
traço curioso da época actual é que a designação ‘a Direita’ está hoje a
ser retomado com entusiasmo por certos sectores que se reclamam da
Direita e se dizem inimigos da esquerda — bem como inimigos da própria
direita democrática e moderada (que raramente usa essa expressão
‘direita’, preferindo, na América, as expressões “conservadores’ ou
‘Republicanos’).
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Após uma longa e detalhada análise historiográfica das várias correntes
conservadoras ou republicanas na América desde a década de 1920,
Continetti é claro na identificação de vários elementos distintivos
entre essas correntes.
Entre
eles, o autor sublinha, em primeiro lugar, a distinção entre
‘isolacionismo vs. multilateralismo’. O isolacionismo, em regra
associado ao proteccionismo económico, também chamado “anti-globalismo”,
foi dominante entre os Republicanos antes e durante o início da II
Guerra Mundial (chegando a ter tonalidades pró-nazis e anti-semitas,
ainda que marginais). Esse isolacionismo anti-globalista ficou de tal
forma desacreditado que só com o multilaterismo anti-comunista e
pró-democracia de Ronald Reagan, na década de 1980, a política externa
Republicana retomou credibilidade — e, em rigor (felizmente também, em
meu entender), supremacia.
Um
segundo elemento distintivo tem a ver com a imigração. Também na década
de 1920 até ao início da II Guerra, o discurso anti-imigração era
dominante entre os Republicanos. Foi também Ronald Reagan quem
restabeleceu a tradição mais antiga dos Republicanos a favor da
imigração, distinguindo entre imigração legal, que apoiou, e ilegal, que
condenou. Reagan recordou que a América é uma nação feita de e por
imigrantes — e que estes devem continuar a ser bem recebidos, desde que
aceitem e assumam os chamados ‘valores americanos’ consagrados na
Constituição.
Em
terceiro lugar, Continetti recorda a antiga distinção entre
contra-revolucionários e conservadores — hoje de novo em voga entre
muitos que se reclamam “do povo contra as elites”. Continetti observa
que os contra-revolucionários (expressão usada por eles próprios)
adoptaram a estrutura intelectual e o vocabulário do marxismo. Concebem o
debate político como luta de classes — entre uma ‘classe dominante’
associada ao estado e uma ‘classe popular’ que tenta resistir ao
controlo pelas elites. Para defender a chamada ‘classe popular’, autores
contra-revolucionários atacam os Republicanos moderados como
‘traidores’ e proclamam a necessidade de ‘regime change’ —só que neste
caso trata-se da mudança do próprio regime constitucional americano. E
esse ‘regime change’ será promovido pelos MARs: “Middle American
Radicals” (por vezes também associados ao chamado ‘Tea Party’).
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Continetti observa que estas ideias radicais gozam hoje de grande
popularidade entre os eleitores republicanos. É este caldo de cultura
contra-revolucionário, alimentado por uma deriva revolucionária entre os
Democratas, expressa pelo patético sr. Bernie Sanders, que gerou o
sucesso eleitoral do sr. Trump (o qual, como aqui repetidamente chamei a
atenção, continua a nunca abotoar o casaco e a insultar aos gritos os
adversários, numa clara postura revolucionária e ungentlemanly, que
nunca seria admitida num Gentlemen’s Club).
Mas
Continetti certeiramente recorda que, também na década de 1920, ideias
semelhantes gozavam de grande popularidade entre os eleitores
republicanos — e depois estiveram 40 anos no deserto (‘in the
wilderness’), até que o conservadorismo liberal clássico dos
Republicanos gerou o saudoso Ronald Reagan (em aliança atlântica com a
não menos saudosa Margaret Thatcher).
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Felizmente, acrescenta Continetti, permanecem no partido Republicano
conservadores não revolucionários que ‘compreendem que o conservadorismo
foi fundado na oposição aos extremos, quer da revolução quer da
contra-revolução. Que negam que as instituições políticas, sociais e
culturais da América já não possam ser reparadas. Que sustentam que este
país permanece digno do nosso orgulho e da nossa defesa. Que negam que
estejamos numa guerra civil, quente ou fria. Que sustentam que os nossos
adversários políticos ainda são nossos concidadãos. Que sabem que o
nosso (demasiado grande) aparelho de estado não é um regime totalitário.
[…] Ainda há conservadores que permanecem leais aos princípios e
instituições dos Fundadores da América e da liberdade ordeira que está
no seu coração.”
5 Talvez
possa ser aqui ainda brevemente recordado que um problema
político-intelectual muito semelhante — embora de tonalidade dominante
contrária — esteve presente em Portugal após o 25 de Abril de 1974 e o
25 de Novembro de 1975, e no plano cultural, muito depois disso, até
hoje.
Tratava-se
da dicotomia “Fascismo ou Revolução”, que tinha como seu principal
adversário o socialista democrático Mário Soares — então designado como
‘o homem dos americanos’. Mário Soares simplesmente recusou com
Olímpico (e, como ele próprio disse, ‘burguês’) desprezo essa ‘dicotomia
infeliz’ entre a chamada ‘Esquerda unida contra a Direita’, também
expressa no slogan ‘O Povo Unido jamais será vencido’ ou no slogan
‘Fascismo ou Revolução’. E Soares proclamou corajosamente a prioridade
da democracia liberal pluralista, fundada na concorrência parlamentar,
pacífica e civilizada, entre esquerda democrática e direita democrática,
bem como na firme oposição comum contra a esquerda e direita
revolucionárias.
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Voltarei seguramente a este assunto. Para já, gostaria de recordar o
livro de Jerry Z. Muller, Conservatism: An Anthology of Social and
Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University
Press, 1997), e sobretudo o clássico de Lord Quinton, The Politics of
Imperfection: The Religious and Secular Traditions of Conservative
Thought in England from Hooker to Oakeshott (1978).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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