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O austríaco foi além da economia, reposicionando a seta da epistemologia liberal em seu tempo e tem, na sua crítica política, o maior trunfo de seu legado, quando voltamos a viver sob vislumbres de momentos autoritários. Pedro Henrique Alves para a Gazeta do Povo:
Friedrich
Hayek, ou somente "Hayek", como é mundialmente conhecido, foi muito
mais que um economista austríaco e acadêmico, foi antes um bastião da
liberdade como um todo. No século XX, foi um dos mais proeminentes
acadêmicos liberais. Seu livro mais famoso, O caminho da servidão
(1944), um dos 100 que mais influenciaram a humanidade, segundo a lista
de Martin Seymour-Smith, modificou a crítica política e filosófica ao
socialismo nos EUA e no Reino Unido; e, desde meados da década de 1940,
tornou-se um dos manuais necessários para quem adentra o caminho sério
das ciências políticas.
George
Orwell (1903-1950), Karl Popper (1902-1994), Margaret Thatcher
(1925-2013) e Ronald Reagan (1911-2004) compõem parte da lista de
admiradores e leitores públicos de suas obras. Já não bastasse tudo
isso, em 1974 foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia, e, apesar de
toda a sua humildade em buscar justificar sua nomeação nas causas
políticas, no equilíbrio ideológico que a Academia Sueca tentava manter
ao dar o prêmio ora para um centralista ora para um liberal, fato é que
Hayek foi um dos pioneiros na teoria da moeda e das flutuações, e, por
isso, se fez merecedor dos louros do Nobel. Um dos mais geniais críticos
do keynisianismo e da URSS, fez com que a economia liberal
estabelecesse seus valores centrais e forçou a revisão geral dos valores
iluministas do liberalismo radical após considerações acadêmicas
brilhantes.
O
austríaco foi além da economia — como já ficou claro —, ele acabou
reposicionando a seta da epistemologia liberal em seu tempo e tem, na
sua crítica política, o maior trunfo de seu legado atual, quando
voltamos a viver sob vislumbres de momentos autoritários. Tendo em sua
bagagem um Prêmio Nobel de economia, mais de 20 livros e um sem número
de artigos, além do título de algoz de Keynes, vamos conhecer um pouco
mais desse monstro para os keynesianos e guardião guerreiro para os
liberais.
Infância ideal
Friedrich
August von Hayek nasceu em 1899, na movimentada e aclamada Viena do
final do século XIX, filho de August von Hayek (1871-1928), médico e
botânico; e de Felicitas Johanna Valerie von Hayek (1875-1967) – filha
de Franz von Juraschek (1849-1910), funcionário do alto escalão do
Império Autro-Húngaro –, é dela que vem a linhagem nobre do liberal.
Como parte da aristocracia, ele e seus dois irmãos, Edler Heinrich Franz
Felix von Hayek (1900-1969) e Edler Erich Beatus Gustav von Hayek
(1904-1968), tiveram, desde cedo, a possibilidade de cursarem as
melhoras escolas de Viena. Friedrich e seus irmãos tiveram uma infância
confortável, podendo se dedicar de forma integral aos estudos e
convivendo com a alta sociedade. Mais tarde, Hayek afirmaria que muito
de seu sucesso posterior saiu desse período. Afirmou ainda que
“provavelmente foi a [infância] mais ideal que poderia ter.”
Uma
curiosidade referente à família de F. A. Hayek é que ele é primo em
segundo grau do aclamado filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
considerado por alguns estudiosos como um dos últimos grandes
revolucionários da lógica e da epistemologia da história da filosofia
moderna.
Em
1919 a Áustria baniria os títulos de nobreza, fazendo com que o “von”
deixasse de ser usado no país. August “von” Hayek, todavia, considerado
um dos membros mais tradicionais da família “von Hayek”, usou dos
estudos e publicações como forma de manter e solidificar sua nobreza
simbólica na alta sociedade do país; publicando inúmeros artigos e
escritos — especialmente na área da botânica — preservar a linhagem de
nobreza nobre da família parecia ser para August uma espécie de missão.
Tal postura orgulhosa do pai, muito provavelmente influenciou de maneira
decisiva a vida posterior de seus três filhos, todos eles laureados
estudiosos em suas respectivas áreas. Em Friedrich Hayek: a biography, o
cientista político Alan Ebenstein afirma que as longas horas passadas
com o pai em seu escritório fizeram com que F. A. Hayek adquirisse o
gosto pela vida intelectual e acadêmica; ainda na adolescência, afirmava
aos amigos e familiares que iria se estabelecer em alguma grande
universidade de Viena ou da Europa.
Na
juventude, durante a Primeira Guerra Mundial, Hayek participou
diretamente na bateria de artilharia estacionada na divisa com a Itália;
sua atuação na linha de frente fez com que perdesse considerável
capacidade auditiva do ouvido esquerdo, atrasasse seus planos acadêmicos
e, como mais tarde brincou, mudasse seu ímpeto inicial voltado aos
estudos da biologia — influenciado pelo pai e pela publicação de A
Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1889) — para a
psicologia.
Foi
com interesse singular nesse ramo — ainda que certamente ligado, de
alguma forma, à biologia — que Friedrich se matriculou na Universidade
de Viena; não demorou, porém, para ele se estabelecer de vez nos estudos
do direito, e lá, finalmente, conseguisse seu primeiro diploma como
especialista na área. Na sua classe, estavam grandes intelectuais como
Gottfried von Haberler (1900-1995) e Oskar Morgenstern (1902-1977),
ambos influentes intelectuais da esfera da economia, muito inspirados
pelo clima intelectual liberal da universidade e pelos ares sociais da
Áustria daquele instante — explicam tantos os biógrafos de Hayek quanto
os de Ludwig von Mises (1881-1973).
Em
agosto de 1926, casou-se com Helen Berta Maria von Fritsch (1901-1960),
com quem teve dois filhos: Christina Maria Felicitas e Lorenz Josef
Heinrich von Hayek. Em 1950, Hayek se divorciou de Helen para se casar,
apenas algumas semanas depois, com Helene Bitterlich (1900-1996), com
quem viveu até a morte. Alguns biógrafos dizem que Helene teria sido o
seu amor de infância, o que teria motivado a separação da sua primeira
esposa; fato é que o divórcio foi mal visto por alguns amigos íntimos de
Hayek, tornando esse momento um dos mais duros para o economista,
momento esse, aliás, no qual posteriormente biógrafos situariam o início
de sua depressão.
Abandono das ideias socialistas
No
último ano como estudante na Universidade de Viena, encantou-se pelo
trabalho de Carl Menger (1840-1921) no ramo das ciências sociais, em
especial na macroeconomia, e, sob a tutela e exemplo de outro grande
intelectual da universidade, Friedrich von Wieser (1851-1926),
doutorou-se também nessa disciplina. A essa altura, Hayek já havia se
doutorado em ciências sociais e direito pela mesma universidade.
Em
1922, conheceu e trabalhou com Ludwig von Mises, economista que já
tinha certo renome acadêmico por seus trabalhos pioneiros na teoria
monetária e por sua obra Socialism, lançada no mesmo ano que se
conheceram. Posteriormente, Hayek admitiria que essa obra teria
fundamental importância em seu abandono das ideias socialistas, ideias
que mantinha certo apreço desde a juventude.
Mises
o contrataria como diretor do Instituto Austríaco de Ciclos Econômicos
por seus conhecimentos jurídicos e econômicos, um casamento raro de
competências acadêmicas, dizia o pai da Escola de Economia Austríaca. E,
devido à influência da famosa Teoria dos Ciclos Econômicos,
desenvolvida nos seminários de Mises, que Hayek frequentava com
assiduidade, não demorou para que logo lançasse a sua primeira obra no
ramo econômico, Monetary theory and the trade cycle, escrita e lançada
em 1929, plenamente finalizadas, porém, em 1933.
Hayek
já começava a despontar nos círculos intelectuais da Europa e sua
crítica econômica revirava olhos – seja por raiva ou amor. Foi por essa
proeminência que Lionel Robbins (1898-1984), economista britânico,
chamou-o para palestrar na London School of Economics and Political
Science (LSE) sobre suas teses em Teoria Monetária. O ano era 1931, e a
Inglaterra fervilhava em debates econômicos e sociais, principalmente em
Cambridge e Oxford; a destruição fruto da guerra passada, unida à
eminência de uma nova, fazia com que as preocupações econômicas
invadissem os debates populares e jornalísticos. Os economistas
levantavam-se como possíveis cavaleiros de defesa da sociedade, e Hayek –
não raro – era pintado como um dos grandes desses círculos.
Algoz de Keynes
Após
o sucesso das palestras, ele foi convidado para ser professor de
Ciências Econômicas e Estatística na mesma LSE, cargo que ocupou até
final de 1950. Após 1938, data em que se naturalizou inglês, Hayek já
era mundialmente conhecido como o algoz acadêmico do pop John Maynard
Keynes (1883-1946), teórico com quem debateu a vida toda, mesmo após a
morte deste.
Com
uma simpatia e cavalheirismo de ambos os lados, Hayek fez de seus
duradouros anos de academia um desfile de contraposições econômicas às
teses de Keynes. Após o lançamento do aclamado livro de Kaynes Um
Tratado sobre a Moeda (1930), ainda na LSE, Hayek teceu inúmeras
críticas através de artigos, palestras e, posteriormente, em livros.
Kaynes, por sua vez, fez o mesmo com o livro Prices and Production
(1933), o segundo lançado por Hayek. Em 1972, Hayek dedicaria uma obra
inteira para criticar as teses de Kaynes, A Tiger by the Tail: The
Keynesian Legacy of Inflation.
Obviamente
que a ressonância da disputa acadêmica entre ambos os economistas
chegou a outros economistas de renome, muitas dessas críticas levaram
ambos os autores a revisarem suas teorias, fazendo com que Kaynes
lançasse, em 1936, uma de suas principais e mais conhecidas obras: A
Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro; por sua vez, Hayek só
responderia a essa publicação em 1941, com seu The Pure Theory of
Capital.
Não
obstante à disputa econômica entre Keynes e Hayek, este último também
desenvolveu uma crítica filosófica e política tão, ou até mais, profunda
que sua crítica econômica; e fato é que poucos se deram conta disso ou,
por algum motivo, não quiseram assim descrevê-lo. Na década de 1930,
muito provavelmente embalado pelo encanto intelectual inglês ante o
comunismo soviético, Hayek notou que a ideologia comunista padecia de um
otimismo beirando à irracionalidade ante a capacidade humana de
planificação da sociedade. Tal percepção, inclusive, é o motor que
alimentou a sua principal obra em termos de popularidade até os dias
atuais: O caminho da servidão, lançada em 1944; em palestras em
Cambridge, ele denominou esse frenesi comunista como sendo um “abuso da
razão”, expressão que daria nome a um projeto intelectual que ficaria
décadas a fio em maturação.
Para
Hayek, o cientificismo ideológico da esquerda tentava emular uma
exatidão metodológica típica das ciências naturais, aplicando tais
conclusões ideológicas na sociedade tal como um cientista testa suas
fórmulas em cobaias ou em ambientes controlados para tais fins. O
socialismo, explicava Hayek, transformava a política e a sociedade em
verdadeiros laboratórios ideológicos e, na maioria das vezes, fazia da
população os seus ratos de testes. Não raro, por exemplo, viam-se
comunistas acadêmicos afirmando que o regime soviético era tão ou mais
científico que as próprias ciências naturais. Essa distorção de
concepção e aplicação da ciência acabou criando uma excelente ferramenta
marqueteira para o socialismo, sem que tal retórica tenha, no entanto,
qualquer substância de realidade. Mas isso, segundo explica o
economista, não era um problema somente do comunismo, os positivistas e
muitos liberais acreditavam piamente que a extensão do conhecimento
científico era praticamente infinito; e que tal como se criou um sabão
ou um alvejante em laboratórios, poder-se-ia criar também sociedades
perfeitas ou quase-perfeitas, a partir das conclusões dos cientistas.
Hayek
faria, a partir dessa sua crítica, uma verdadeira cruzada intelectual
nos campi de Cambridge e na sociedade como um todo. Livros que cobririam
diretamente esse tema surgiriam pelo menos mais dois: The
Counter-Revolution of Science (1952), que consistiam em uma coleção de
ensaios do projeto Abusos da razão, citado há pouco: e The Sensory
Order: An Inquiry into the Foundations of Theoretical Psychology (1952).
Em
2019, a LVM Editora lançou em um livro dois ensaios de Hayek,
proferidos primeiramente como palestras no recebimento do Prêmio Nobel a
ele concedido, em uma delas há uma passagem que resume plenamente o que
ele entendia sobre esse problema da “pretensão do conhecimento
científico” e a sociedade cientificista. Na página 42 do livro A
pretensão do Conhecimento, ele assim afirma:
"O
conflito entre o que, no atual estado de espírito, o público espera da
ciência para satisfazer os anseios populares e o que ela realmente pode
oferecer é uma questão muito séria, porque, ainda que todos os
verdadeiros cientistas reconheçam as limitações do que são capazes de
fazer no campo das ciências humanas, contanto que o público espere mais,
sempre haverá alguns que aparentarão, e talvez honestamente creiam, que
podem fazer mais do que lhe é possível para responder às demandas
populares"
Ao
findar a Segunda Guerra, Hayek quis organizar um encontro de acadêmicos
que representaria inicialmente uma interação aberta de intelectuais na
busca de acentuar e criar estratégias em prol da democracia liberal e
seus arrimos; o encontro ocorreu em Mont Pèlerin, Genebra, e contou com
39 acadêmicos e intelectuais de mais de 11 países, entre eles estavam
Ludwig von Mises, Milton Friedman (1902-2006), George Stigler
(1911-1991) e Karl Popper, este último, um amigo pessoal de Hayek até a
sua morte. Popper só foi professor na LSE e publicou seu famoso livro A
sociedade aberta e seus inimigos (1945) devido à influência e contatos
de F. A. Hayek no mundo acadêmico. E, assim, nasceu a famosa Sociedade
Mont Pèlerin, um dos recantos dos liberais mais influentes do mundo.
No
final da década de 1950, após pedir para se afastar do LSE – sem uma
explicação muito clara para além das deduções dos especialistas sobre um
cansaço mental –, aportou no recém-aberto Comitê de Pensamento Social,
da Universidade de Chicago. Ali continuou sendo não só um influente
acadêmico, fazendo com que pessoas, das mais variadas especialidades,
chegassem em Chicago para assistir às suas aulas, mas também se firmou
como um dos mais habilidosos críticos sociais daquele instante.
Uma
das características ímpares dessa universidade era o translado quase
que completamente livre entre os estudantes e especialistas de diversas
áreas das Ciências Sociais. Nomes como o da historiadora americana
Gertrude Himmelfarb (1922-2019) acompanharam os passos e
desenvolvimentos de Hayek na referida universidade, ali ele
estabeleceria definitivamente a sua fama acadêmica e como crítico
social, bem como abriria um corredor largo para a popularização das
teses da Escola Austríaca de Economia, seu berço econômico.
Prêmio Nobel
Em
1962, Hayek deixou a Universidade de Chicago e se transferiu para a
Universidade de Freiburg im Breisgau, na então Alemanha Ocidental. E lá
se aposentou em 1968, aceitando um cargo de professor honorário na
Universidade de Salzburg, Áustria. Em 1974, como dito anteriormente, foi
laureado com o Prêmio Nobel de economia, prêmio que recebeu e dedicou
humildemente aos seus críticos que, como disse no discurso de
recebimento, aprimoraram suas ideias e fizeram com que reconsiderasse
outras possibilidades.
Em
1977, estabeleceu-se em Freiburg, onde teve tempo para finalizar a obra
que, segundo Alan Ebenstein, era a menina de seus olhos: Direito,
Legislação e Liberdade, escrito de 1973 a 1979, contendo três volumes.
No início dos anos 1980, Hayek começou a escrever o seu último livro,
uma crítica filosófica e política ao socialismo. Com a saúde já
fortemente debilitada, William W. Bartley III (1934-1990), filósofo
americano, ajudou-o a editar The Fatal Conceit (no Brasil, A arrogância
fatal: os erros do socialismo), publicado em 1988. Hayek morreria em
1992, em Freiburg deixando um legado intelectual fervoroso.
A
extensão da importância do trabalho de Hayek ainda não foi
completamente medida, pois obras como The Counter-Revolution of Science e
Direito, Legislação e Liberdade não foram completamente exploradas,
pelo menos não como deviam. Suas críticas ao socialismo, mais do que
certeiras e localizadas, são proféticas; O caminho da servidão, por
exemplo, escrito em 1944, parece que saiu da gráfica semana passada.
Milton Friedman, em uma entrevista, afirmou que Hayek não somente foi um
homem das classes universitárias, mas a causa da queda do comunismo:
Não
há nenhuma outra pessoa que teve influência tão grande, ninguém teve
mais influência sobre os intelectuais por trás da Cortina de Ferro do
que Friedrich Hayek. Seus livros foram traduzidos e publicados em
mercados negros e secretos, amplamente lidos e, sem dúvida,
influenciaram os rumos da opinião pública, o que, em última instância,
trouxe a queda da União Soviética. (Tradução livre)
Não
compreendemos ainda toda a extensão e importância de Hayek e suas
ideias, essa é a verdade a respeito da qual Friedman nos alertou.
Pois
bem, como parece ter deixado nas entrelinhas ao dedicar a sua vida à
academia e à produção acadêmica, só entenderemos Hayek quando, de fato,
nos debruçarmos sobre as suas produções intelectuais e entendermos as
conexões e extensões de suas ideias.
Para
leigos e novos interessados, Hayek pode soar como um intelectual
obscurecido pelo tempo e seu peso envelhecedor; mas, quando lemos as
suas conclusões econômicas, suas críticas políticas e delineamentos
filosóficos, o austríaco ressurge não como um homem morto que foi
requentado forçosamente por algum fã clube de ativistas libertários, um
homem com críticas ultrapassadas que não compete mais ao nosso tempo,
mas sim como uma mente quase perene, cujas críticas parecem jamais se
desgastarem, seus argumentos jamais atrofiam mesmo ante a mais
contemporânea crítica especializada. Chega a ser assustadora a força e
clareza das ideias de Hayek, com certeza um daqueles poucos pensadores
que, pelo bem da Civilização, jamais deve morrer.
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