MEDIÇÃO DE TERRA

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quarta-feira, 11 de maio de 2022

Hayek além da economia

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

O austríaco foi além da economia, reposicionando a seta da epistemologia liberal em seu tempo e tem, na sua crítica política, o maior trunfo de seu legado, quando voltamos a viver sob vislumbres de momentos autoritários. Pedro Henrique Alves para a Gazeta do Povo:


Friedrich Hayek, ou somente "Hayek", como é mundialmente conhecido, foi muito mais que um economista austríaco e acadêmico, foi antes um bastião da liberdade como um todo. No século XX, foi um dos mais proeminentes acadêmicos liberais. Seu livro mais famoso, O caminho da servidão (1944), um dos 100 que mais influenciaram a humanidade, segundo a lista de Martin Seymour-Smith, modificou a crítica política e filosófica ao socialismo nos EUA e no Reino Unido; e, desde meados da década de 1940, tornou-se um dos manuais necessários para quem adentra o caminho sério das ciências políticas.

George Orwell (1903-1950), Karl Popper (1902-1994), Margaret Thatcher (1925-2013) e Ronald Reagan (1911-2004) compõem parte da lista de admiradores e leitores públicos de suas obras. Já não bastasse tudo isso, em 1974 foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia, e, apesar de toda a sua humildade em buscar justificar sua nomeação nas causas políticas, no equilíbrio ideológico que a Academia Sueca tentava manter ao dar o prêmio ora para um centralista ora para um liberal, fato é que Hayek foi um dos pioneiros na teoria da moeda e das flutuações, e, por isso, se fez merecedor dos louros do Nobel. Um dos mais geniais críticos do keynisianismo e da URSS, fez com que a economia liberal estabelecesse seus valores centrais e forçou a revisão geral dos valores iluministas do liberalismo radical após considerações acadêmicas brilhantes.

O austríaco foi além da economia — como já ficou claro —, ele acabou reposicionando a seta da epistemologia liberal em seu tempo e tem, na sua crítica política, o maior trunfo de seu legado atual, quando voltamos a viver sob vislumbres de momentos autoritários. Tendo em sua bagagem um Prêmio Nobel de economia, mais de 20 livros e um sem número de artigos, além do título de algoz de Keynes, vamos conhecer um pouco mais desse monstro para os keynesianos e guardião guerreiro para os liberais.

Infância ideal

Friedrich August von Hayek nasceu em 1899, na movimentada e aclamada Viena do final do século XIX, filho de August von Hayek (1871-1928), médico e botânico; e de Felicitas Johanna Valerie von Hayek (1875-1967) – filha de Franz von Juraschek (1849-1910), funcionário do alto escalão do Império Autro-Húngaro –, é dela que vem a linhagem nobre do liberal. Como parte da aristocracia, ele e seus dois irmãos, Edler Heinrich Franz Felix von Hayek (1900-1969) e Edler Erich Beatus Gustav von Hayek (1904-1968), tiveram, desde cedo, a possibilidade de cursarem as melhoras escolas de Viena. Friedrich e seus irmãos tiveram uma infância confortável, podendo se dedicar de forma integral aos estudos e convivendo com a alta sociedade. Mais tarde, Hayek afirmaria que muito de seu sucesso posterior saiu desse período. Afirmou ainda que “provavelmente foi a [infância] mais ideal que poderia ter.”

Uma curiosidade referente à família de F. A. Hayek é que ele é primo em segundo grau do aclamado filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), considerado por alguns estudiosos como um dos últimos grandes revolucionários da lógica e da epistemologia da história da filosofia moderna.

Em 1919 a Áustria baniria os títulos de nobreza, fazendo com que o “von” deixasse de ser usado no país. August “von” Hayek, todavia, considerado um dos membros mais tradicionais da família “von Hayek”, usou dos estudos e publicações como forma de manter e solidificar sua nobreza simbólica na alta sociedade do país; publicando inúmeros artigos e escritos — especialmente na área da botânica — preservar a linhagem de nobreza nobre da família parecia ser para August uma espécie de missão. Tal postura orgulhosa do pai, muito provavelmente influenciou de maneira decisiva a vida posterior de seus três filhos, todos eles laureados estudiosos em suas respectivas áreas. Em Friedrich Hayek: a biography, o cientista político Alan Ebenstein afirma que as longas horas passadas com o pai em seu escritório fizeram com que F. A. Hayek adquirisse o gosto pela vida intelectual e acadêmica; ainda na adolescência, afirmava aos amigos e familiares que iria se estabelecer em alguma grande universidade de Viena ou da Europa.

Na juventude, durante a Primeira Guerra Mundial, Hayek participou diretamente na bateria de artilharia estacionada na divisa com a Itália; sua atuação na linha de frente fez com que perdesse considerável capacidade auditiva do ouvido esquerdo, atrasasse seus planos acadêmicos e, como mais tarde brincou, mudasse seu ímpeto inicial voltado aos estudos da biologia — influenciado pelo pai e pela publicação de A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin (1809-1889) — para a psicologia.

Foi com interesse singular nesse ramo — ainda que certamente ligado, de alguma forma, à biologia — que Friedrich se matriculou na Universidade de Viena; não demorou, porém, para ele se estabelecer de vez nos estudos do direito, e lá, finalmente, conseguisse seu primeiro diploma como especialista na área. Na sua classe, estavam grandes intelectuais como Gottfried von Haberler (1900-1995) e Oskar Morgenstern (1902-1977), ambos influentes intelectuais da esfera da economia, muito inspirados pelo clima intelectual liberal da universidade e pelos ares sociais da Áustria daquele instante — explicam tantos os biógrafos de Hayek quanto os de Ludwig von Mises (1881-1973).

Em agosto de 1926, casou-se com Helen Berta Maria von Fritsch (1901-1960), com quem teve dois filhos: Christina Maria Felicitas e Lorenz Josef Heinrich von Hayek. Em 1950, Hayek se divorciou de Helen para se casar, apenas algumas semanas depois, com Helene Bitterlich (1900-1996), com quem viveu até a morte. Alguns biógrafos dizem que Helene teria sido o seu amor de infância, o que teria motivado a separação da sua primeira esposa; fato é que o divórcio foi mal visto por alguns amigos íntimos de Hayek, tornando esse momento um dos mais duros para o economista, momento esse, aliás, no qual posteriormente biógrafos situariam o início de sua depressão.

Abandono das ideias socialistas

No último ano como estudante na Universidade de Viena, encantou-se pelo trabalho de Carl Menger (1840-1921) no ramo das ciências sociais, em especial na macroeconomia, e, sob a tutela e exemplo de outro grande intelectual da universidade, Friedrich von Wieser (1851-1926), doutorou-se também nessa disciplina. A essa altura, Hayek já havia se doutorado em ciências sociais e direito pela mesma universidade.

Em 1922, conheceu e trabalhou com Ludwig von Mises, economista que já tinha certo renome acadêmico por seus trabalhos pioneiros na teoria monetária e por sua obra Socialism, lançada no mesmo ano que se conheceram. Posteriormente, Hayek admitiria que essa obra teria fundamental importância em seu abandono das ideias socialistas, ideias que mantinha certo apreço desde a juventude.

Mises o contrataria como diretor do Instituto Austríaco de Ciclos Econômicos por seus conhecimentos jurídicos e econômicos, um casamento raro de competências acadêmicas, dizia o pai da Escola de Economia Austríaca. E, devido à influência da famosa Teoria dos Ciclos Econômicos, desenvolvida nos seminários de Mises, que Hayek frequentava com assiduidade, não demorou para que logo lançasse a sua primeira obra no ramo econômico, Monetary theory and the trade cycle, escrita e lançada em 1929, plenamente finalizadas, porém, em 1933.

Hayek já começava a despontar nos círculos intelectuais da Europa e sua crítica econômica revirava olhos – seja por raiva ou amor. Foi por essa proeminência que Lionel Robbins (1898-1984), economista britânico, chamou-o para palestrar na London School of Economics and Political Science (LSE) sobre suas teses em Teoria Monetária. O ano era 1931, e a Inglaterra fervilhava em debates econômicos e sociais, principalmente em Cambridge e Oxford; a destruição fruto da guerra passada, unida à eminência de uma nova, fazia com que as preocupações econômicas invadissem os debates populares e jornalísticos. Os economistas levantavam-se como possíveis cavaleiros de defesa da sociedade, e Hayek – não raro – era pintado como um dos grandes desses círculos.

Algoz de Keynes

Após o sucesso das palestras, ele foi convidado para ser professor de Ciências Econômicas e Estatística na mesma LSE, cargo que ocupou até final de 1950. Após 1938, data em que se naturalizou inglês, Hayek já era mundialmente conhecido como o algoz acadêmico do pop John Maynard Keynes (1883-1946), teórico com quem debateu a vida toda, mesmo após a morte deste.

Com uma simpatia e cavalheirismo de ambos os lados, Hayek fez de seus duradouros anos de academia um desfile de contraposições econômicas às teses de Keynes. Após o lançamento do aclamado livro de Kaynes Um Tratado sobre a Moeda (1930), ainda na LSE, Hayek teceu inúmeras críticas através de artigos, palestras e, posteriormente, em livros. Kaynes, por sua vez, fez o mesmo com o livro Prices and Production (1933), o segundo lançado por Hayek. Em 1972, Hayek dedicaria uma obra inteira para criticar as teses de Kaynes, A Tiger by the Tail: The Keynesian Legacy of Inflation.

Obviamente que a ressonância da disputa acadêmica entre ambos os economistas chegou a outros economistas de renome, muitas dessas críticas levaram ambos os autores a revisarem suas teorias, fazendo com que Kaynes lançasse, em 1936, uma de suas principais e mais conhecidas obras: A Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro; por sua vez, Hayek só responderia a essa publicação em 1941, com seu The Pure Theory of Capital.

Não obstante à disputa econômica entre Keynes e Hayek, este último também desenvolveu uma crítica filosófica e política tão, ou até mais, profunda que sua crítica econômica; e fato é que poucos se deram conta disso ou, por algum motivo, não quiseram assim descrevê-lo. Na década de 1930, muito provavelmente embalado pelo encanto intelectual inglês ante o comunismo soviético, Hayek notou que a ideologia comunista padecia de um otimismo beirando à irracionalidade ante a capacidade humana de planificação da sociedade. Tal percepção, inclusive, é o motor que alimentou a sua principal obra em termos de popularidade até os dias atuais: O caminho da servidão, lançada em 1944; em palestras em Cambridge, ele denominou esse frenesi comunista como sendo um “abuso da razão”, expressão que daria nome a um projeto intelectual que ficaria décadas a fio em maturação.

Para Hayek, o cientificismo ideológico da esquerda tentava emular uma exatidão metodológica típica das ciências naturais, aplicando tais conclusões ideológicas na sociedade tal como um cientista testa suas fórmulas em cobaias ou em ambientes controlados para tais fins. O socialismo, explicava Hayek, transformava a política e a sociedade em verdadeiros laboratórios ideológicos e, na maioria das vezes, fazia da população os seus ratos de testes. Não raro, por exemplo, viam-se comunistas acadêmicos afirmando que o regime soviético era tão ou mais científico que as próprias ciências naturais. Essa distorção de concepção e aplicação da ciência acabou criando uma excelente ferramenta marqueteira para o socialismo, sem que tal retórica tenha, no entanto, qualquer substância de realidade. Mas isso, segundo explica o economista, não era um problema somente do comunismo, os positivistas e muitos liberais acreditavam piamente que a extensão do conhecimento científico era praticamente infinito; e que tal como se criou um sabão ou um alvejante em laboratórios, poder-se-ia criar também sociedades perfeitas ou quase-perfeitas, a partir das conclusões dos cientistas.

Hayek faria, a partir dessa sua crítica, uma verdadeira cruzada intelectual nos campi de Cambridge e na sociedade como um todo. Livros que cobririam diretamente esse tema surgiriam pelo menos mais dois: The Counter-Revolution of Science (1952), que consistiam em uma coleção de ensaios do projeto Abusos da razão, citado há pouco: e The Sensory Order: An Inquiry into the Foundations of Theoretical Psychology (1952).

Em 2019, a LVM Editora lançou em um livro dois ensaios de Hayek, proferidos primeiramente como palestras no recebimento do Prêmio Nobel a ele concedido, em uma delas há uma passagem que resume plenamente o que ele entendia sobre esse problema da “pretensão do conhecimento científico” e a sociedade cientificista. Na página 42 do livro A pretensão do Conhecimento, ele assim afirma:

"O conflito entre o que, no atual estado de espírito, o público espera da ciência para satisfazer os anseios populares e o que ela realmente pode oferecer é uma questão muito séria, porque, ainda que todos os verdadeiros cientistas reconheçam as limitações do que são capazes de fazer no campo das ciências humanas, contanto que o público espere mais, sempre haverá alguns que aparentarão, e talvez honestamente creiam, que podem fazer mais do que lhe é possível para responder às demandas populares"

Ao findar a Segunda Guerra, Hayek quis organizar um encontro de acadêmicos que representaria inicialmente uma interação aberta de intelectuais na busca de acentuar e criar estratégias em prol da democracia liberal e seus arrimos; o encontro ocorreu em Mont Pèlerin, Genebra, e contou com 39 acadêmicos e intelectuais de mais de 11 países, entre eles estavam Ludwig von Mises, Milton Friedman (1902-2006), George Stigler (1911-1991) e Karl Popper, este último, um amigo pessoal de Hayek até a sua morte. Popper só foi professor na LSE e publicou seu famoso livro A sociedade aberta e seus inimigos (1945) devido à influência e contatos de F. A. Hayek no mundo acadêmico. E, assim, nasceu a famosa Sociedade Mont Pèlerin, um dos recantos dos liberais mais influentes do mundo.

No final da década de 1950, após pedir para se afastar do LSE – sem uma explicação muito clara para além das deduções dos especialistas sobre um cansaço mental –, aportou no recém-aberto Comitê de Pensamento Social, da Universidade de Chicago. Ali continuou sendo não só um influente acadêmico, fazendo com que pessoas, das mais variadas especialidades, chegassem em Chicago para assistir às suas aulas, mas também se firmou como um dos mais habilidosos críticos sociais daquele instante.

Uma das características ímpares dessa universidade era o translado quase que completamente livre entre os estudantes e especialistas de diversas áreas das Ciências Sociais. Nomes como o da historiadora americana Gertrude Himmelfarb (1922-2019) acompanharam os passos e desenvolvimentos de Hayek na referida universidade, ali ele estabeleceria definitivamente a sua fama acadêmica e como crítico social, bem como abriria um corredor largo para a popularização das teses da Escola Austríaca de Economia, seu berço econômico.

Prêmio Nobel

Em 1962, Hayek deixou a Universidade de Chicago e se transferiu para a Universidade de Freiburg im Breisgau, na então Alemanha Ocidental. E lá se aposentou em 1968, aceitando um cargo de professor honorário na Universidade de Salzburg, Áustria. Em 1974, como dito anteriormente, foi laureado com o Prêmio Nobel de economia, prêmio que recebeu e dedicou humildemente aos seus críticos que, como disse no discurso de recebimento, aprimoraram suas ideias e fizeram com que reconsiderasse outras possibilidades.

Em 1977, estabeleceu-se em Freiburg, onde teve tempo para finalizar a obra que, segundo Alan Ebenstein, era a menina de seus olhos: Direito, Legislação e Liberdade, escrito de 1973 a 1979, contendo três volumes. No início dos anos 1980, Hayek começou a escrever o seu último livro, uma crítica filosófica e política ao socialismo. Com a saúde já fortemente debilitada, William W. Bartley III (1934-1990), filósofo americano, ajudou-o a editar The Fatal Conceit (no Brasil, A arrogância fatal: os erros do socialismo), publicado em 1988. Hayek morreria em 1992, em Freiburg deixando um legado intelectual fervoroso.

A extensão da importância do trabalho de Hayek ainda não foi completamente medida, pois obras como The Counter-Revolution of Science e Direito, Legislação e Liberdade não foram completamente exploradas, pelo menos não como deviam. Suas críticas ao socialismo, mais do que certeiras e localizadas, são proféticas; O caminho da servidão, por exemplo, escrito em 1944, parece que saiu da gráfica semana passada. Milton Friedman, em uma entrevista, afirmou que Hayek não somente foi um homem das classes universitárias, mas a causa da queda do comunismo:

Não há nenhuma outra pessoa que teve influência tão grande, ninguém teve mais influência sobre os intelectuais por trás da Cortina de Ferro do que Friedrich Hayek. Seus livros foram traduzidos e publicados em mercados negros e secretos, amplamente lidos e, sem dúvida, influenciaram os rumos da opinião pública, o que, em última instância, trouxe a queda da União Soviética. (Tradução livre)

Não compreendemos ainda toda a extensão e importância de Hayek e suas ideias, essa é a verdade a respeito da qual Friedman nos alertou.

Pois bem, como parece ter deixado nas entrelinhas ao dedicar a sua vida à academia e à produção acadêmica, só entenderemos Hayek quando, de fato, nos debruçarmos sobre as suas produções intelectuais e entendermos as conexões e extensões de suas ideias.

Para leigos e novos interessados, Hayek pode soar como um intelectual obscurecido pelo tempo e seu peso envelhecedor; mas, quando lemos as suas conclusões econômicas, suas críticas políticas e delineamentos filosóficos, o austríaco ressurge não como um homem morto que foi requentado forçosamente por algum fã clube de ativistas libertários, um homem com críticas ultrapassadas que não compete mais ao nosso tempo, mas sim como uma mente quase perene, cujas críticas parecem jamais se desgastarem, seus argumentos jamais atrofiam mesmo ante a mais contemporânea crítica especializada. Chega a ser assustadora a força e clareza das ideias de Hayek, com certeza um daqueles poucos pensadores que, pelo bem da Civilização, jamais deve morrer.

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