O valor daqueles que arriscam suas vidas para trazer imagens e relatos independentes de um conflito, mesmo quando o acesso aos locais é garantido por uma das partes interessadas, está aí: eles são o melhor antídoto à guerra de informação. Diogo Schelp para a Gazeta do Povo:
Dos
inúmeros cacoetes, muletas argumentativas ou lugares comuns repetidos
por analistas, comentaristas ou correspondentes a respeito do conflito
na Ucrânia, o mais irritante sem dúvida é abuso da expressão "guerra de
informação". É a palavra mágica usada por alguns desses meus colegas
quando não sabem a resposta a uma pergunta (por exemplo, quantos
soldados russos ou ucranianos morreram até agora) ou quando querem
fingir imparcialidade, dando ares de dúvida às informações endossadas ou
divulgadas por um lado ou outro da guerra.
É
evidente que existe guerra de informação tanto por parte de Vladimir
Putin, da Rússia, quanto de Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, e de seus
assessores. Mas cabe aos jornalistas e analistas internacionais filtrar
esses dados, separar o joio do trigo, conferir o que é possível e
divulgar ressalvando as fontes, quando necessário.
Lavar
as mãos para o que está sendo informado aos leitores, ouvintes ou
espectadores, dizendo simplesmente que há muita "guerra de informação", é
o mesmo que abdicar do papel do bom jornalismo e entregar a produção de
notícia aos incautos ou palpiteiros das redes sociais.
Guerra
de informação existe em todas as guerras. É para isso que existem os
correspondentes de guerra, além dos editores e dos comentaristas que
absorvem o mundaréu de dados que chegam da zona de conflito para
interpretá-los. Eles, nós, existimos para trazer ao público apenas a
informação.
O
mundo está recebendo em choque as imagens e os relatos de ruas cheias
de corpos de pessoas — ucranianos, civis, em sua maioria homens — em
Bucha, nos arredores de Kiev. Foram deixados para trás pelas tropas
russas em retirada nos últimos dias.
O
governo russo nega que seus soldados tenham massacrado civis em Bucha, o
que configuraria um crime de guerra. O Kremlin alega que "as fotos e os
vídeos publicados pelo regime de Kiev (...) são outra provocação".
Ou seja, seriam imagens fabricadas, parte da tal "guerra de informação".
Não
são. Boa parte do conteúdo que está rodando o mundo com os horrores de
Bucha e de outras localidades ao redor da capital Kiev foi produzido por
jornalistas profissionais de diferentes agências ou órgãos de imprensa.
Esses
correspondentes podem ter sido levados por militares ou representantes
do governo ucraniano para verem e registrarem as cenas horripilantes,
mas isso não significa que os fatos não sejam verdadeiros.
Historicamente,
militares toleram a presença de jornalistas em zonas de conflito porque
esperam conseguir direcionar o olhar desses profissionais de forma a
difundir para o mundo a sua versão para os fatos da guerra. Por exemplo,
de que suas tropas estão fortes e vencendo o inimigo.
Da
mesma forma, os combatentes tentam limitar a atuação dos jornalistas
quando não querem expor suas fraquezas ou quando têm algo ainda pior
para esconder (seus próprios crimes de guerra, por exemplo).
O
governo ucraniano tentou, de fato, limitar o acesso de jornalistas
independentes à linha de frente nesta guerra em diversos momentos. O
lado russo, por sua vez, sequer permite que jornalistas internacionais
acompanhem suas tropas.
No
primeiro caso, ainda que com dificuldades, os jornalistas ao menos
conseguem algumas frestas para observar e relatar a realidade do
conflito. No segundo caso, nem isso. O que prevalece é simplesmente a
versão russa.
Por
isso é preciso levar muito a sério as imagens e os relatos dos
massacres em Bucha e em outras cidades. Não se trata de guerra de
informação. São fatos bem documentados, por profissionais independentes.
Não é possível fabricar cenas de massacres como essas de maneira tão
perfeita.
Um
correspondente de guerra experiente é capaz, por exemplo, de
identificar se os corpos carbonizados ou baleados estão ali há poucas
horas, quando o local já havia retornado para as mãos das forças
ucranianas, ou há alguns dias, quando ainda estava sob o jugo russo.
Inúmeras outras evidências podem ser coletadas para indicar o que
aconteceu e quem está por trás da matança.
Descrevi
em meu livro Correspondente de Guerra (Editora Contexto) — escrito em
parceria com o fotógrafo André Liohn, que passou as últimas semanas na
Ucrânia cobrindo a guerra e esteve perto de Bucha — diversos episódios
em que jornalistas vislumbram a verdade dos fatos em uma zona de
conflito mesmo quando tutelados por um grupo combatente, muitas vezes
até mesmo chegando a conclusões opostas daquelas pretendidas pelos
"anfitriões".
A
Guerra do Vietnã (1954-1975) é um dos exemplos mais clássicos. O fato
de a maioria dos jornalistas ter tido o acesso ao front possibilitado
pela própria estrutura militar americana, que frequentemente procurava
direcionar a cobertura, não impediu que os relatos que enviavam aos seus
veículos de comunicação fossem muitas vezes desfavoráveis à estratégia
de guerra dos Estados Unidos.
O
valor daqueles que arriscam suas vidas para trazer imagens e relatos
independentes de um conflito, mesmo quando o acesso aos locais é
garantido por uma das partes interessadas, está aí: eles são o melhor
antídoto à guerra de informação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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