Contra quem ou o que um anarquista se volta? Contra o gozo dessa estrutura do Estado. Luiz Felipe Pondé via FSP:
O
anarquismo foi uma das correntes que ao longo do século 19 disputou o
imaginário político dos revolucionários europeus. Tendo em figuras
controversas como Mikhail Bakunin
um dos seus pais fundadores, o anarquismo tem também formas menos
socialistas e mais individualistas, como o filósofo americano Henry Thoreau ou mesmo capitalista, como os anarco-capitalistas que cultuam o mercado.
A
ideia abstrata de uma sociedade sem estado é o modo mais comum de se
pensar o anarquismo. Outro modo é associar o anarquismo com o niilismo
político e a violência generalizada na sociedade. Uma forma mais
consistente de conhecer o anarquismo é buscar alguns dos seus expoentes,
e a partir de suas experiências históricas, compreender contra quem ou o
que o anarquismo se voltava.
Para o leitor brasileiro, recomendo "A História do Anarquismo" de Jean Préposiet, traduzido pelas edições 70.
O
príncipe russo Piotr Alexeivich Kropotkin foi uma das maiores figuras
do anarquismo. Vejamos alguns poucos reparos de contexto contra quem pensa que a Rússia seja um strogonoff.
Ser
um príncipe na Rússia nada tinha a ver com ser filho do Czar. Era um
título de nobreza ancestral. Conde e barão eram uma importação comprada
da Alemanha pelos Romanov, que eram em si alemães de origem —argumento
usado pelos russos durante a primeira guerra acusando-os de traidores.
Já
os príncipes eram descendentes dos boyardos, líderes tribais que haviam
expulsado os mongóis e criado a Rússia europeia a partir de Kiev, a
capital de todas as Rússias —um príncipe deitava raízes profundas na
história da fundação da Rússia. A família de Kropotkin eram príncipes de
Smolensk no oeste russo. A tradição familiar sustentava que eram
descendentes da dinastia de Rurik, que fora regente do principado de
Kiev e reinara sobre a Rússia antes dos Romanov. Portanto, estamos
diante da alta aristocracia russo-ucraniana.
Desde
jovem o príncipe Kropotkin —título que rejeitou posteriormente— mostrou
sua vocação rebelde aos maus tratos com os servos-escravos —sua família
contava com cerca de 1200 almas, o que era um bom patrimônio na época.
Sua carreira militar o levou a Sibéria, recusando postos de mais futuro
na hierarquia do governo. As viagens que ele fez pela Sibéria oriental e
pela China marcaram profundamente sua visão de mundo e seu exercício de
geógrafo.
Apesar
da importância da convivência, principalmente na Suíça, com discípulos
de Marx e Bakunin —que ele preferia—, onde aprendeu muito com os
operários revolucionários, foi sua experiência com os camponeses russos
que determinou sua visão política de mundo.
Já
no exército, Kropotkin encontrou aquilo que seria um dos seus grandes
objetos de ódio e combate: a mentalidade burocrática e sua hierarquia. A
percepção de que a burocracia —dita necessária para o bom funcionamento
da sociedade— era, na verdade, um artefato contra as pessoas resolverem
seus problemas cotidianos, saltou aos olhos de Kropotkin. Mais do que
isso: há um gozo específico na mentalidade burocrática, e esse gozo
degenera quem a ela se submete.
Vemos
que antes de um discurso político contra a noção de Estado, Kropotkin
percebeu que o poder da burocracia corrompia as pessoas e sugava a
capacidade criativa delas. Qualquer pessoa que viva no século 21 sabe
disso, mesmo que hoje a burocracia seja colorida e tenha a forma de
aplicativos e senhas.
Suas
viagens exploratórias, e a capacidade de sobrevivência dos camponeses, o
levou a aderir ao movimento populista russo (narodnik) que pregava a
"ida ao povo" como forma de aprender a viver nas suas comunidades (mir)
e, ao mesmo tempo, ajudá-los a sair do analfabetismo, pobreza e
ignorância.
Os
narodniks foram uma importante matriz da revolução russa. Evidente que o
resultado dessa "ida ao povo" foi ambivalente para esses jovens. Muita
inspiração e muita agonia.
Nos
seus embates com os marxistas e bolcheviques, Kropotkin identificou
neles o gozo pela hierarquia burocrática e previu, assim, o fracasso da
revolução russa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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