O filósofo Alain Finkielkraut |
França quis proteger as minorias afundando-as nas suas tradições, cultura e modo de vida, ao invés de as integrar na comunidade francesa. Questionou a laicidade do Estado e o resultado está à vista. André Abrantes Amaral para o Observador:
A
1 de Dezembro de 2021 o jornal Le Monde publicou um artigo no qual
acusava alguns filósofos e ensaístas franceses de promoverem a
candidatura presidencial de Éric Zemmour. De acordo com o jornal, parte
de uma élite intelectual teria normalizado o discurso racista de Zemmour
e tornado o candidato credível aos olhos do eleitorado. Dias mais
tarde, Alain Finkielkraut, um dos visados pelo Le Monde, respondeu à letra.
Para Finkielkraut há uma obsessão antifascista e anti-racista em França
que esconde factos como uma sondagem que revela que 40% dos estudantes
colocam a religião acima das leis da república. Uma obsessão que visa
reduzir a França a uma agenda de cariz progressista.
É
preciso salientar que Finkielkraut não é fascista nem de
extrema-direita. Nem sequer concorda com Éric Zemmour. Foi dos que se
opôs a Jean-Marie Le Pen na segunda volta de 2002 e votou em Manuel
Valls nas primárias socialistas para as presidenciais de 2017. O
problema com que Finkielkraut tem de lidar é que não sendo fascista nem
progressista volta não volta é acusado por um extremo de pertencer ao
outro extremo. Alain Finkielkraut é simplesmente um francês que quer
pensar o seu país e isso pressupõe conhecê-lo. É um intelectual que quer
dizer o que pensa sem ser punido por isso.
E
o que tem dito é que as políticas progressistas são as grandes
responsáveis pela não integração e posterior assimilação das minorias
francesas. Ao baixar o grau de exigência de algumas escolas, ao
confundir alta cultura com cultura popular, o regime político
osctracizou boa parte da população mais desfavorecida negando-lhe acesso
ao conhecimento detido por uma elite ou ao alcance desta. Ao ceder no
que se entendia por laicidade do Estado, as políticas ditas
progressistas deram espaço a que a escola pública deixasse de ser um
local de aprendizagem onde todos os alunos fossem iguais. Um bom exemplo
disso mesmo sucedeu em 1989. A 18 de Setembro desse ano duas alunas de
13 anos foram impedidas de frequentar a escola porque o véu que
utilizavam ia contra as regras do bom funcionamento daquele
estabelecimento de ensino. A polémica no país foi acesa. De um lado
posicionaram-se os que eram a favor da proibição do véu e do outro os
que eram contra. Lionel Jospin, o então ministro da educação, decidiu
que era proibido proibir (‘Il est exclu d’exclure’) e deixou que o véu
fosse utilizado pelas raparigas. No entanto, e como se estava numa
escola laica, manteve-se a proibição dos cristãos utilizarem crucifixos
ou quaisquer símbolos religiosos. A discriminação era evidente, mas a
consciência sossegou-se porque os muçulmanos eram minoritários. O
resultado foi que a escola pública deixou de ser um espaço laico de
integração das raparigas muçulmanas na sociedade francesa. Estava feita a
divisão.
Alain Finkielkraut não foi o único a fazer estes avisos. Há 7 anos tive oportunidade de referir o alerta de outro francês, Pascal Bruckner.
Dizia ele que o estado francês escolheu proteger as minorias
afundando-as no seu modo de vida, tradições e cultura ao invés de as
integrar na comunidade francesa. Ao fazê-lo, enfraqueceu-as ao ponto de
estas se sentirem estrangeiras em França, mas sem outro país que não a
França. As políticas progressistas condenaram as minorias a um limbo
existencial que dói porque dói não se saber o que se é. Outro alerta foi
o de Jérôme Fourquet e que referi numa outra crónica,
já para o Observador, em 2018. Segundo Fourquet, a separação social
entre privilegiados e os mais desfavorecidos, entre as cidades e o mundo
rural, acentuou-se nos últimos 30 anos de forma progressiva e sem que
os franceses se tivessem apercebido. A tese de Fouquet, apesar de
tentadora, é enganadora (como tentei explicar no dito artigo, a França é
um dos países mais igualitários do mundo), pois a separação existe, só
que não é social nem salarial mas de índole cultural, como também é
entre os que se integraram na globalização e os que ficaram para trás;
entre os que têm a segurança do emprego no estado e os que trabalham num
sector privado cada vez mais competitivo.
Segundo Finkielkrault a França corre o risco de se tornar numa pequena nação porque, nas palavras de Milan Kundera, as pequenas nações são as que ponderam o seu fim.
E há o risco de a França deixar de existir porque quer ignorar os
problemas reais que afectam os franceses. O receio da França se perder
não é novo. De Gaulle viveu perseguido com o fantasma não do fim da
França, mas da sua grandeza. Na famigerada 4.ª República, o partido
comunista oscilou entre os 28% dos votos expressos em 1946 e os 25% em
1956, nas últimas legislativas do regime. Apenas com a nova
Constituição, apresentada por De Gaulle em 1958, e devido ao novo
sistema de duas voltas, se conseguiu refrear o poder eleitoral dos
comunistas. De 150 deputados em 1956, o PCF ficou reduzido a 10. Isto
num universo de mais de 500 deputados. De Gaulle compreendeu logo após o
fim da II Guerra Mundial que a França se inclinava entre dois abismos.
De um lado o rancor por Vichy; do outro o deslumbramento pelo ideal
comunista que também vencera a guerra. Os tempos eram difíceis com
restrições de vária ordem. Além da áurea da resistência na guerra o
partido comunista contava com o apoio dos operários e dos mais
desfavorecidos. A democracia francesa resistiu porque se vivam os
primeiros dos 30 anos de um glorioso crescimento económico. Aos poucos
as pessoas foram vivendo melhor e a pressão comunista reduziu-se. Mas a
democracia também resistiu porque De Gaulle compreendeu que a questão
argelina tinha de ser resolvida, o que conseguiu com paciência, sem um
caminho pré-definido, mas pronto para aproveitar todas as oportunidades.
Os
desafios actuais são outros mas assemelham-se. De um lado a França
estagnou economicamente, os salários não crescem, fruto de um Estado
excessivamente regulamentador para um mundo globalizado, e parte da
população foi prejudicada com a saída de algumas indústrias para as
economias emergentes; por outro há um receio da islamização do país,
fruto da forte presença francesa no norte de África, principalmente na
Argélia. Em 1961, De Gaulle resistiu a um golpe de Estado e foi devido
ao seu Citroën DS 19 que, no ano seguinte, escapou a uma tentativa de
assassinato. Imagine-se algo parecido suceder a Macron e diríamos que a
França estava perdida. A memória é curta e a história ajuda-nos a
colocar os problemas em perspectiva.
A
diferença para os dias de hoje reside na censura não oficial que
dificulta e silencia quem não é progressista. Não oficial porque não
emana do estado, mas da própria imprensa, da praça pública que usa o
politicamente correcto para não permitir que certos assuntos sejam
discutidos ou quando estes o são difama quem se afasta da narrativa
dominante. Uma democracia e um estado de direito formal, mas que na
prática não respira, atrofia e aos poucos definha. Uma democracia sem as
válvulas de escape do debate político e de ideias e que é apanhada de
surpresa em vésperas das eleições presidenciais em que aqueles que não
são ouvidos votam. Trata-se de uma censura mais difícil de combater
porque mais difícil de definir e de localizar. Os vigias deixaram de ser
os polícias; tornaram-se no cidadão-comum que se indigna sem saber bem a
razão do seu mal-estar e clama condenações sem pensar.
Há
5 anos Emmanuel Macron quis ser um presidente reformista para
liberalizar a economia. O problema francês é que as suas dificuldades
não se reduzem à economia. São também culturais e democráticas. De
Gaulle concedeu a independência à Argélia; Macron terá de integrar as
minorias na França. Uma lição a termos em conta para não cairmos no
mesmo erro em Portugal. Não me refiro a não combater politicamente as
forças extremistas, mas em ouvir os seus eleitorados. Um pouco à
semelhança do que se fez com o PCP: foi politicamente combatido, mas o
seu eleitorado nunca foi acusado de gostar de ditaduras. Simplesmente,
eram portugueses que viviam com dificuldades.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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