MEDIÇÃO DE TERRA

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terça-feira, 1 de março de 2022

In Memoriam: Quem foi Olavo de Carvalho?

 



Ergueu-se sistematicamente contra a mania revolucionária de querer inventar um homem novo. Via, na senda de Aristóteles, o homem como uma realidade definida, não como uma plasticina moldável. Afonso Moura para o diário português Observador:


Não sou a pessoa mais indicada para escrever sobre Olavo de Carvalho. Ponderei até se deveria fazê-lo. Porém, face ao silêncio, à caricatura e à telegráfica menção da sua morte, constatei um vazio, principalmente deste lado do Atlântico. As linhas que se seguem deverão ser vistas como uma ajuda para colmatar esse vazio.

Olavo de Carvalho (1947-2022) foi um pensador que conseguiu criar seguidores, entusiastas ou mesmo acólitos. Este facto, por si só, merece destaque: é raro encontrarmos pensadores com tanto impacto na vida de tanta gente. Nunca fui olavista – não devesse eu tanto a Maquiavel e não tivesse Olavo escrito Maquiavel ou a Confusão Demoníaca – mas não creio que seja um crime moral sê-lo, ou tê-lo sido. Olavo de Carvalho é um produto genuinamente brasileiro; estou certo que na África lusófona, como em Portugal, existem pessoas que se reclamarão do Olavismo, mas serão sempre poucas em comparação com as da sua terra natal, mesmo proporcionalmente.

Olavo foi um homem do Novo Mundo, certamente encantado com a velha Europa mas ao mesmo tempo distante dela. Como se a travessia do Atlântico nos fizesse perder alguma coisa pelo caminho, não desembarcamos no Rio de Janeiro como embarcámos em Lisboa. O homem que mais fascinou Olavo teve que abandonar a Europa devido à Segunda Guerra Mundial; seu nome era Otto Maria Carpeaux. A sua obra História da Literatura Ocidental marcou Olavo de Carvalho grandemente. Cremos que ele nunca perdoou à Europa o que esta fez a Carpeaux, mesmo se o Brasil foi o grande beneficiado.

Olavo foi um jornalista. Fino observador da mídia no seu país, rapidamente se apercebeu que a esquerda estava bem presente e que a direita pouca relevância tinha. O jornalista brasileiro reconheceu grande mérito a Antonio Gramsci. Através dele compreendeu que a verdadeira batalha não é a das urnas, mas sim a das mentes. Se a voz da direita é inaudível na televisão, ilegível nos jornais e rara no meio universitário, dificilmente poderá governar o país.

Existiram e existirão governos de “direita”, mas enquanto estes se submeterem ao magistério moral da esquerda, serão de direita só de nome. Os membros desta “direita” são conhecidos no país de adopção do brasileiro como RINOs (Republicans in name only – Republicanos só de nome).

O exilado brasileiro debateu com Alexandre Dugin, eminentíssimo geopolitólogo russo. Fazê-lo requer coragem, coisa que não faltava a Olavo. Benjamin Teitelbaum escreveu um livro que aborda Steve Bannon e os outros dois – War for eternity: inside Bannon’s far-right circle of global power brokers (nossa tradução: Guerra pela eternidade: dentro do círculo de extrema-direita dos fazedores de reis globais de Bannon).

O livro de Teitelbaum tem algum mérito, principalmente para aqueles que vivem num imaginário americanocêntrico e desconhecem quem é Alexandre Dugin e quem é Olavo de Carvalho. Contudo, alguém que conheça decentemente a Filosofia Política e a Geopolítica pouco extrairá da obra do americano. Teitelbaum informa-nos honestamente na sua author’s note de que a sua interacção com Dugin e com Olavo foi mais limitada do que com Bannon.

Olavo foi católico. E este foi o seu maior pecado segundo os guardiães do templo. Ele voltou a colocar uma questão que atravessou todo o século XIX e grande parte do século XX: é o catolicismo compatível com o liberalismo? A sua resposta foi negativa.

Isso colocou Olavo de Carvalho numa posição que, na História das Ideias Políticas, é muito mais a posição do contra-revolucionário do que a posição do tradicionalista. O seu combate contra o comunismo e os seus poderosos tentáculos corrobora essa realidade.

Rejeitou os princípios da Revolução Francesa e combateu o espírito revolucionário em todas as suas formas. Escreveu e orou – nos dois sentidos da palavra, falar e rezar – contra aquilo que Zygmunt Bauman descreveu como a modernidade líquida, contra as forças dissolventes que minam as ligações sociais e comunitárias.

Contrariamente a muitos outros praticou aquilo que pregou. Deixou oito filhos e nunca virou a cara à luta, por mais difícil que o entorno se apresentasse. Ergueu-se, sistematicamente, contra a mania revolucionária de querer inventar um homem novo. Via, na senda de Aristóteles, o homem como uma realidade definida, não como uma plasticina moldável.

Se Carpeaux o fascinou, foi Lénine que o inspirou e Taine que o moldou. A sua ida para os Estados Unidos foi inspirada por uma ideia do revolucionário russo – a revolução faz-se desde o estrangeiro. Como a sua abordagem a Gramsci já entrevia, nunca teve medo de aprender com o adversário ideológico. Insistia minuciosamente que os pensadores socialistas deveriam ser lidos e estudados, não ignorados como uma grande parte da direita apregoava.

À argúcia de Lénine tem que ser acrescentada a mundividência de Taine. O historiador francês, autor das Origens da França Contemporânea, foi um modelo para Olavo. A sua explicação da Revolução Francesa e a sua maneira de escrever a História sempre induziram no brasileiro um enorme respeito e uma admiração cristalina.

Taine foi, na nossa modesta opinião, aquilo que fez de Olavo de Carvalho um contra-revolucionário heterodoxo. A ortodoxia contra-revolucionária – que podemos ler em Joseph de Maistre, Louis de Bonald ou Donoso Cortés – não era aplicável ao século do jornalista brasileiro. Assim, ele teve que a adaptar para lidar com os problemas do seu próprio tempo.

É igualmente Taine a chave para compreender a opinião positiva que alcançou em relação aos Estados Unidos. Através do francês ele conseguiu compreender a esterilidade de uma tentativa de regressar a um ponto do passado. A isto terá de se acrescentar que Olavo deixava transparecer na sua visão da História uma diferença capital entre as duas revoluções do século XVIII. Enquanto a francesa havia sido maligna a americana havia sido, pelo menos parcialmente, benigna. Aqui encontramos aquele corte clássico entre Edmund Burke e Thomas Paine. O brasileiro colocar-se-ia ao lado do primeiro, não do segundo.

Olavo foi menos do que os seus fanáticos dizem, mas foi mais do que os seus adversários defendem. Para o julgar correctamente será necessário lê-lo e ouvi-lo. Nadou contra a corrente e alavancou a mudança num país complexo e indomável. O Brasil do primeiro terço do século XXI não poderá ser compreendido sem ele. A próxima década continuará a opor os seus fiéis aos seus detractores.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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