Editorial da Gazeta chama
a atenção para a Lei das fake news, intentada na Câmara, que ameaça não
só a privacidade das pessoas, mas a liberdade de expressão. Um projeto
que merece o repúdio dos cidadãos:
Em breve, a Câmara deve votar o Projeto de Lei 2.630, popularmente
conhecido como “Lei das fake news”. Ainda que o texto aprovado no Senado
tenha retirado muitos pontos controversos da proposta, como o foco de
combater a “desinformação”, a vinculação de contas à identificação civil
dos usuários e a obrigatoriedade da vinculação de agências de checagem
de fatos junto aos serviços de mensagem, restam problemas que demandam
atenção especial de toda a sociedade. O tempo de maturação da votação
entre a primeira aprovação e a segunda tem servido para fornecer
importantes insumos para o debate na opinião pública. E depois da
manifestação de vários especialistas sobre o tema, já se faz possível
destacar os pontos mais controversos da proposta.
Certamente, o mais preocupante entre eles diz respeito aos riscos
para a privacidade dos cidadãos que utilizam de aplicativos de mensagens
como WhatsApp ou Telegram. Com o objetivo declarado de combater a
disseminação em massa das fake news, o projeto prevê um dispositivo que
possibilita o rastreamento de mensagens que se espalharam por
determinado número de contas. A empresa responsável pela aplicação
estaria obrigada a reter mensagens e dados privados de usuários em caso
de disparos para mais de 5 pessoas e que, adicionalmente, tivessem
alcançado mil usuários. A ideia é garantir que, em caso de investigação,
seja possível localizar o emissor principal e, por conseguinte, o
criador do conteúdo em questão. Com isso, o poder público supostamente
contaria com um instrumento para coibir a disseminação de notícias
falsas, principalmente as de conteúdo infamante ou calunioso, além de
identificar as contas que serviriam somente como “robôs” para a
disseminação de mensagens.
Desde que o dispositivo foi aprovado no Senado, muitos especialistas
têm esclarecido os riscos de sua permanência, de modo que pontos que
antes pareciam obscuros vão se revelando claramente inaceitáveis. Um
primeiro problema óbvio é que 5 pessoas para uma mensagem é um número
muito pequeno, o que apanharia a quase totalidade das conversas em
grupo, mesmo familiares, se a mensagem eventualmente aí lançada acabasse
tendo um alcance maior. Além disso, rastrear o primeiro disparo
demandaria também o rastreamento de grande parte dos perfis de pessoas
que receberam a mensagem e a repassaram adiante, por acreditarem na
veracidade e/ou na relevância do conteúdo. Essa invasão de privacidade
sobre as conversas pessoais ou aquilo que as pessoas compartilham na sua
rede pessoal de contato é em si mesma muito perigosa.
Atualmente, aplicativos como WhatsApp não guardam de antemão o
conteúdo das mensagens enviadas pelas pessoas. A criptografia de ponta a
ponta existe justamente para fazer com que esse conteúdo não possa ser
extraído ilegalmente de um servidor central, para fins escusos. O
projeto forçaria então uma readequação do serviço no país, permitindo
que operadores de aplicações tivessem acesso prévio a conversas pessoais
de milhões de cidadãos sob a justificativa de coibir um crime. Em
termos de telecomunicações, isso equivaleria à imposição sobre empresas
de telefonia da obrigação de manter gravação de todas as conversas de
seus clientes, a fim de facilitar procedimentos policiais que visassem
coibir a circulação de um boato ou de um crime de calúnia e difamação.
Na medida em que as empresas também se tornam obrigadas a fornecer
relatórios ao Estado, além de prestarem contas a um conselho específico a
ser criado conforme previsão do projeto, o resultado desse instrumento
não pode ser outro que não controle autoritário. O projeto enfraquece o
direito à privacidade, garantido pela Constituição no seu art. 5º,
inciso X, sob justificativa de combater um mal. A própria criptografia
das mensagens resta ameaçada. Conversas e dados pessoais de milhões de
pessoas passam a ficar expostos para funcionários das empresas de
aplicativos que são em si mesmo sujeitos à falha ou má fé. Estamos
falando também de senhas de e-mail ou de sistemas, fotos de crianças,
vídeos íntimos, dados de cartão de crédito que porventura foram trocados
entre parentes, segredos de indústria e de governo e toda uma série de
informações que podem transitar eventualmente por essas aplicações.
Ainda que se alegue que a quebra da criptografia só ocorrerá por
decisão judicial, depois de reconhecido o abuso da mensagem, não há
proporcionalidade entre o crime (difamação ou calúnia principalmente, em
geral apenados com penas brandas) e a criação de um sistema gigantesco
de armazenamento de conversas particulares, com o potencial de gerar uma
sensação geral e permanente de fiscalização estatal, no pior modelo Big
Brother, do livro 1984 de George Orwell.
É sempre bom lembrar que o mercado negro de informações é um dos mais
lucrativos do mundo. De acordo com pesquisa da Digital Shadows,
calcula-se que algo em torno de 15 bilhões de credenciais de contas
roubadas estão à venda em fóruns de crimes cibernéticos na dark web.
Desses, 5 bilhões são considerados únicos, isto é, não foram oferecidos
para venda mais de uma vez. Os nomes de usuários e senhas vêm de mais de
100.000 violações de dados separadas e incluem credenciais de acesso
para contas financeiras, e-mails, serviços de streaming e pontos de
acesso para sistemas de centenas de organizações. As informações
roubadas que vão à venda nesse mercado têm um preço médio de US$ 15,00
por conta. Quando se trata de contas financeiras ou bancárias, pode
subir a US$ 70,00 por pessoa. Contas de streaming, mídia social e outros
serviços podem ser compradas por menos de US$ 10,00. A quantidade de
credenciais desviadas aumentou em 300% desde 2018.
Crime resulta da combinação de ofensor motivado, vítima disponível,
ausência de vigilância e oportunidade. O projeto centraliza nos
servidores de aplicações uma quantidade valiosíssima de informação que
pode ser comercializada no atacado ou no varejo da criminalidade
cibernética. Em face da vigência próxima da Lei Geral de Proteção de
Dados (LGPD), que responsabiliza diretamente as empresas pelo destino
final dos dados dos usuários e clientes, há que se duvidar mesmo que
alguém esteja disposto a oferecer esse serviço em face do risco que
passa a correr por estar de posse de tamanha quantidade de informações.
Essa porteira aberta para a interferência autoritária contra a
liberdade de expressão encontra resguardo em outro ponto do projeto, que
prevê a criação de Conselho de Transparência e Responsabilidade na
Internet, órgão que teria a função de supervisionar as redes de
aplicativos de mensagens, definir diretrizes para a sua autorregulação e
um código de conduta para o setor. Em uma palavra, cabe tudo dentro
dessas atribuições. Numa estratégia conhecida, é o Estado querendo
legislar por meio de aparatos de fiscalização, pela emissão de
portarias, decisões e outros dispositivos não sujeitos ao controle
democrático.
É preciso que os parlamentares eliminem do texto os dispositivos
citados. As ameaças ao direito de privacidade e liberdade de expressão
contidas neles são palpáveis. A população precisa cobrar para que seus
representantes não cometam esse erro, resguardados pelo esfriamento do
debate público causado pela pandemia. Cedo ou tarde, a conta vem.

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