Foi assim, forçado pelos equívocos intrínsecos de sua fantasia inicial e
pela chegada da pandemia, que o presidente Bolsonaro se viu obrigado a
retroceder. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
Na tradição liberal, a atividade política é entendida como a arte de
equacionar os problemas da sociedade com o mínimo possível de confronto e
violência. Uma arte que pressupõe o uso do poder do Estado, mas de
forma comedida, guiada por um sentimento de proporção.
Em seu primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro ignorou solenemente
esse ensinamento fundamental da história política ocidental. Orientado,
segundo se diz, pelo sábio da Virgínia, ele adotou uma linguagem
radical, como se as urnas lhe houvessem conferido autoridade para mudar
as próprias bases da sociedade e do sistema político. Como se a maioria
eleitoral lhe tivesse outorgado autoridade para fazer o que lhe
aprouvesse. Para refazer os fundamentos da economia e liquidar o que
denominou “velha política”. Não hesitaria sequer em intervir no campo
dos valores e comportamentos, implantando uma nova moralidade.
Por mais críticos que sejamos das estruturas e práticas públicas
vigentes em nosso país, salta aos olhos que o bolsonarismo da primeira
fase não se deixava pautar por uma perspectiva de comedimento e
proporção. Em vez de se acomodar à distribuição de forças e objetivos
corporificada na Constituição e nas leis, não disfarçava sua preferência
por uma linha de terra arrasada, bem próxima do que o filósofo Bernard
Yack denominou o mito da revolução total.
Nem de longe advogo uma opção pelo status quo. Sabemos todos que o
Estado brasileiro está desde há muito corroído por interesses
patrimonialistas e corporativistas, e pela corrupção sistêmica. Que
nossa economia está travada, desprovida de dinamismo, excessivamente
fechada e, portanto, incapaz de superar a chamada “armadilha do
crescimento médio”. Que nossas desigualdades sociais, em si
inaceitáveis, são diariamente reforçadas por um sistema educacional
calamitoso. Que nosso sistema político é manifestamente disfuncional.
Não há como ignorar ou subestimar a gravidade de tais desafios, mas o
imperativo de superá-los terá de ser compatibilizado com o regime
democrático, cujos pilares são, como antes argumentei, o comedimento e
um sentimento de proporção.
É óbvio que o projeto inicial do bolsonarismo – se assim pode ser
denominado – não poderia dar certo. Nenhuma sociedade, e em particular
as regidas por regimes democráticos, se deixa dobrar com a facilidade
que ele pressuponha. Ele haveria de esbarrar, como esbarrou, na
diversidade corporificada nas instituições do Estado e na miríade de
grupos e associações existentes no País. Se tais restrições em alguma
medida sempre se impõem, mais dramaticamente ainda se impuseram a partir
do momento em que o Brasil e o mundo inteiro sofreram o tremendo
impacto da covid-19. Incapaz de levar avante o esforço (sem dúvida,
louvável) de ajuste nas contas públicas, o governo viu-se forçado a
trilhar o caminho inverso, destinando cifras consideráveis ao combate à
doença.
Foi assim, forçado pelos equívocos intrínsecos de sua fantasia
inicial e pela chegada da pandemia, que o presidente Bolsonaro se viu
obrigado a retroceder. Obrigado não só a desistir do combate ao que
vagamente denominava “velha política”, mas a trazer uma parte concreta
dela – o chamado Centrão – para dentro do Estado. Não só a desistir do
combate à corrupção, mas a aliar-se aos que se empenhavam em deter seu
ímpeto, levando de roldão os avanços logrados pela Lava Jato. A opção
que lhe restou para conservar certa similitude com o personagem
fantasioso que inicialmente quis encarnar foi assumir uma conduta
irresponsável em relação à pandemia, solapando abertamente a ação dos
agentes médicos que lhe fazem frente nos níveis estadual e municipal.
Quanto ao projeto inicial, o passar do tempo não deixa dúvidas. Era
um vazio, um oco total. Um buraco negro que só poderia perdurar
engolindo toda a luz que em volta dele restasse. Seu fracasso nos
arremessou de volta não ao ponto onde nos encontrávamos, uma vez que,
bem ou mal, tínhamos uma agenda de reformas razoavelmente bem delineada.
Arremessou-nos a um ponto anterior, a uma molécula nefasta na qual o
populismo e a irresponsabilidade do presidente se sobrepuseram ao
desafio das reformas que cedo ou tarde teremos de enfrentar.
Sabemos todos que, enquanto não dispusermos de um remédio ou de uma
vacina eficaz, milhares de vidas continuarão a ser diariamente ceifadas.
Que, por ora, o que podemos fazer é observar estritamente o
distanciamento e o uso de máscaras. Isolado em suas crenças, na
contramão do resto do mundo, Bolsonaro insiste em fazer o oposto: sai à
rua sem máscara, aglomera-se com correligionários e chega mesmo a
abraçar crianças e bebês. Cria esse espetáculo para propagandear o
remédio milagroso que julga ter descoberto. Com que objetivo? Essa
pergunta não parece comportar uma resposta racional. Pretende manter-se
na crista da onda, de olhos fitos na eleição de 2022? Despreparado para a
vida pública e para o cargo que ocupa, quer extravasar impulsos
narcisistas que não consegue controlar?
Só Deus sabe.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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