“Um
texto que se fecha em si mesmo, que impõe uma moral, é um texto que não
confia na criança; e essa é uma das maiores gafes que se pode cometer
na literatura infantil.”
Por Marina Cyrino Leonel*
Meu
primeiro livro estava prestes a ir para a gráfica quando um curso de
literatura infantil surgiu no meio do caminho. Eu já tinha trabalhado
duro nesse livro, feito todas as revisões e edições, mas achei a
oportunidade perfeita para dar aquele retoque final. Me inscrevi.
Expliquei para o professor que estava com o prazo apertado e perguntei
se poderíamos adiantar a mentoria individual, com o que ele gentilmente
concordou.
Contei
que era uma autora independente, apresentei a obra e pedi que a
analisasse. Desliguei o computador após uma hora de conversa e, em
lágrimas, disse para o meu esposo: “Cancela tudo. Não vai dar para
publicar o Clay”.
“Tenho
certeza de que não está tão ruim assim”, ele rebateu. Afinal, fazia um
ano e meio que eu havia abraçado de vez o sonho de escrever. Minhas
newsletters cresciam, meu primeiro romance estava nascendo e eu já tinha
concluído diversos cursos de escrita. O livro infantil, inclusive,
surgiu durante um workshop de criatividade que tinha como proposta a
criação de um livro artesanal.
Clay
é um personagem que vive no mundo das formas geométricas e parte em uma
jornada para descobrir a forma que quer ser quando crescer – uma
história inspirada em tudo o que aprendi com a transição de carreira.
Achei que a mensagem tinha força e me animei a fazer do projeto um livro
de verdade. Eu já tinha experiência com adultos, então escrever para
crianças seria fichinha, certo?
Errado.
Erradíssimo! Tudo bem, meu esposo até tinha um pouco de razão. O livro
não era horrível. Tinha uma boa estrutura e personagens legais. Mas
aquela uma hora de conversa com o professor revelou bastidores da
literatura infantil que eu desconhecia. Tive que admitir que o Clay não
estava, nem de longe, interessante ou adequado para crianças. Foi a hora
de respirar fundo. Adiei a impressão dos exemplares para correr atrás
do que deveria ter sido o primeiro passo desse projeto: a leitura
crítica.
Percebi
que o meu texto tinha um campo semântico pobre, como se faltasse uma
brincadeira entre as palavras. Também me dei conta do excesso de
diminutivo, um clássico da linguagem (desnecessária) que adotamos ao
conversar com a criançada. O mais difícil, no entanto, foi enxergar a
lição de moral explícita que eu havia colocado no livro sem perceber. Só
faltava ter escrito: “Entenderam, crianças”?
Uau.
Ainda que fosse na melhor das intenções, lá estava eu, passando sermão e
subestimando a inteligência do leitor. Um texto que se fecha em si
mesmo, que impõe uma moral, é um texto que não confia na criança; e essa
é uma das maiores gafes que se pode cometer na literatura infantil.
Por
que não deixar a criança criar sua própria interpretação da história?
Não é bem mais estimulante abrir espaço para ela soltar a imaginação?
Assim, esse leitor poderá crescer, ganhar novas experiências, aumentar
sua bagagem e criar novos significados a cada releitura. Se a infância é
um processo de constante transformação, a literatura também deve ser.
No
final das contas, acabei reescrevendo o Clay praticamente inteirinho.
Rio de mim mesma quando lembro que, até pouco tempo atrás, poderia
afirmar que criar histórias para crianças é moleza. Hoje acredito que é,
na verdade, muito mais difícil do que escrever para adultos. O motivo é
uma palavra que costuma ser bastante negligenciada: responsabilidade. A
literatura infantil requer cuidado com cada palavra colocada no papel. É
mais do que entreter e educar. É confiar na capacidade das crianças de
imaginar, interpretar e, principalmente, sentir. Esse é o propósito do
livro.
*Marina Cyrino Leonel,
paulistana de 31 anos, é formada em medicina veterinária pela Unesp de
Botucatu, com especialização e mestrado em reprodução animal. Após anos
atuando na área e fundando uma startup de atendimento veterinário
domiciliar, Marina decidiu resgatar seu amor pela escrita, um sonho que
cultivava desde a infância.
Em
2023, ingressou na comunidade da escrita afetuosa de Ana Holanda e
participou de cursos de escrita criativa, incluindo um programa da
Universidade Sarah Lawrence, nos EUA, e um curso de literatura infantil
com Anderson Novello.
Em abril, estreia na literatura com "Clay - Que forma você quer ser quando crescer?”
(Editora Labrador), uma história sobre profissões, vocações e não ter
medo de se reinventar que conta com ilustrações de Sami Ribeiro.
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