As novas gerações arriscam-se a só conseguir encontrar as versões originais em alfarrabistas, bibliotecas ou nas estantes dos avós. Sem acesso a elas, ficarão com as ideias mais pré-formatadas. João Pedro Marques para o Observador:
O
puritanismo politicamente correcto continua de vento em popa no mundo
editorial britânico e depois de Roald Dahl, Ian Fleming, Enid Blyton,
Agatha Christie, chegou a vez de P. G. Wodehouse ser postumamente
censurado. A editora Penguin Random House alterou passagens das suas novelas
por as considerar “inaceitáveis”. Como era de prever, e está de acordo
com o espírito censório deste absurdo tempo em que vivemos, a linguagem
com alusões raciais foi suprimida ou extensamente modificada, pois os
lápis azuis dos chamados leitores de sensibilidade não deixaram passar
nenhuma dessas heresias.
O
que é um leitor de sensibilidade? É uma espécie de detector de metais,
de farejador de droga — sem ofensa — ou de filtro de partículas. Um
livro tem várias alusões de natureza racial ou identitária? A editora
entrega-o a pessoas negras e LGBTQI+ para que digam se se sentiram
chocados com o que leram e, em caso afirmativo, que identifiquem o que
os chocou. Como começa a ser da praxe em Inglaterra e nos Estados
Unidos, a Penguin Random House recorreu aos serviços de leitores de
sensibilidade, entregou-lhes os livros de Wodehouse e, em consequência
do veredicto desses leitores, alterou-os. Também fez notas avisando os
potenciais compradores das obras — como se eles fossem acéfalos — que os
livros foram escritos há muito tempo e que alguns dos seus temas,
caracterizações e personagens poderão estar “desactualizados”.
À
esquerda há quem cinicamente defenda a tese de que esta forma de
censura é, apenas, um artifício para melhorar a circulação dos livros e
torná-los mais populares. No fundo, uma jogada de marketing livreiro.
E essa tese seria de considerar se aquilo a que assistimos com a
reescrita de livros não fizesse parte de um movimento muito mais amplo
de censura de filmes, de ideias, de remoção de estátuas, da alteração de
títulos de quadros e do puro e simples cancelamento de pessoas. Há, no
Ocidente, um movimento censório que dá pelo nome de wokismo que quer
corrigir as heranças do passado, incluindo as literárias.
Isto
que se passa com os livros de autores já desaparecidos está certamente a
bater forte nas obras de autores vivos ainda a publicar. Vimos há pouco
com que argumentos uma editora norte-americana recusou a publicação de um livro de Afonso Reis Cabral e eu próprio tive um leve prenúncio disso quando publiquei o meu primeiro livro de História
em Inglaterra. O revisor do texto fez pressão para que eu substituisse o
termo “escravo”, como constava no texto original, por “pessoa
escravizada”. Estava-se, então, em 2005, nos primórdios desta fúria
revisora a que temos assistido. Se fosse agora talvez a editora
britânica se recusasse a publicar o meu livro caso eu não anuísse —
como, de facto, não anuí — à alteração que me propunham.
Como
romancista mas também, ou sobretudo, como historiador, olho para tudo o
que se está a passar nesta área com pena pelo empobrecimento que
decisões editoriais destas implicam, desde logo em termos de
diversidade. A Penguin Random House fez questão de garantir que as
alterações introduzidas aos livros de Wodehouse não vão “afectar a
história”. No seu mural de Facebook, Eugénia Galvão Teles, a colunista
do Expresso, duvidou, e bem, que na Penguin tenham percebido o que
aqueles livros são. “A história não interessa para nada — escreveu — É a
linguagem que torna os livros únicos”.
No
Reino Unido essa linguagem e a de outros autores está a ir à viola e
esse alisamento das irregularidades — chamemos-lhe assim — está a apagar
as marcas do tempo, as variações e as permanências ao longo dos anos,
ou seja, está a apagar a História. Qualquer um de nós, quando olha para
trás, deve ter ao seu alcance todos os meios para poder perceber
espessura e diversidade, para poder entender que as épocas idas eram, em
vários aspectos, diferentes daquela em que vivemos. A literatura é uma
óptima maneira de o perceber de uma forma muito intensa e autêntica.
Quando leio Eça, por exemplo, dou-me conta de que os códigos de conduta
eram diferentes dos nossos, que se usavam palavras e expressões que
raramente ou nunca usamos e que se pensava de forma pouco parecida com a
nossa a respeito de diversas coisas (raça, política, economia,
costumes). Quando se aplainam essas diferenças, quando se substituem
palavras para que o texto fique de acordo com os padrões ideológicos
predominantes na nossa época, tira-se aos potenciais leitores a
possibilidade de perceber como é que a burguesia portuguesa concebia a
realidade e falava em termos raciais, morais ou outros, no final do
século XIX.
O
argumento de que as editoras estariam, com estas iniciativas, a
defender a finíssima pele das almas sensíveis, facilmente
impressionáveis e escandalizáveis, é um falso argumento. Sempre houve
almas dessas e em certas épocas houve-as em grande profusão e evidência.
Desde inícios do século XVIII, pelo menos, que a literatura de ficção
ajudou a criar o (e se dirigiu ao) leitor sensível. Prestando homenagem
ao culto da sensibilidade e desenvolvendo, também, a noção de
benevolência — e de felicidade decorrente do seu exercício —, novelistas
e poetas ajudaram a construir um tipo de pessoa que Henry MacKenzie
imortalizou no romance The Man of Feeling (1771) e que era, no fundo,
alguém capaz de empatizar com o sofrimento humano. Essas pessoas com o
coração no sítio certo e os sentimentos à flor da pele tinham
necessidade de objectivar a sua sensibilidade e virtude aliviando o
sofrimento das vítimas inocentes, e viram-se, então, muitas delas
insurgirem-se contra as injustiças que eram observáveis no seu tempo: as
condições nas prisões, o tráfico transatlântico de escravos, a chaga do
pauperismo e da fome, e por aí fora. Que me recorde nenhuma dessas
pessoas se notabilizou por advogar a censura de textos alheios. Ou seja,
a sua sensibilidade impelia-as à acção, à tentativa de correcção dos
males do mundo, e não a repressão das palavras dos outros.
O
que é novo no wokismo dos nossos dias não é a sensibilidade, mas sim a
utilização pervertida dessa sensibilidade como desculpa para censurar,
cortar, cancelar, alterar aquilo que os outros escrevem ou escreveram. A
pretexto de encontrar aquela palavra que não ofenda ninguém, esta ânsia
correctora do movimento editorial woke irá inspeccionar e varrer para
fora do tempo e da nossa visão os conceitos e os termos que, na
perspectiva do wokismo, devem ser proscritos. Ora a busca dessa palavra
que não ofenda ninguém poderá ser um objectivo político e diplomático,
mas não é, garantidamente, um objectivo literário, nem tem, nessa
esfera, mérito ou valor.
Em
Portugal, sentimo-nos, por enquanto, a salvo desta onda de loucura.
Quando lemos as notícias que nos chegam do mundo editorial britânico,
sorrimos de divertimento ou de incredulidade, ou, então, encolhemos os
ombros de indiferença, mas respiramos de alívio por essa onda não ter
chegado até nós. Na minha geração quase ninguém acreditará que ela possa
cá chegar, mas essa convicção é ilusória porque esta não é apenas uma
questão cultural é, também, em boa parte, geracional. É verdade que,
entre nós, esta sofreguidão de reescrever obras literárias não penetra
senão marginalmente em pessoas de um determinado nível etário — digamos
que os maiores de 60 anos são geralmente estanques a essa forma de
wokismo. Mas ela penetra como faca quente em manteiga nas gerações mais
novas, sujeitas quotidianamente, a nível escolar e não só, a uma
verdadeira catequização woke.
Aliás,
o wokismo vem sendo incutido entre os jovens já há alguns anos e eu
próprio passei por um episódio que o revela e que talvez venha a
propósito contar aqui. De facto, um jovem revisor, cheio de zelo
censório, achou por bem alterar palavras que eu havia escrito sem me dar
conta de que o tinha feito. Onde eu escrevera “pretinha” — pois era
assim que se dizia no século XIX, época que esse livro se passa — ele
colocou “criança africana”. Felizmente, eu leio sempre os textos quando
vêm da mão do revisor e dei-me conta da troca, expus a situação a quem
de direito e tudo voltou à primeira forma.
Percebi,
na altura, que aquele não era um simples caso isolado, mas a antecâmara
de coisas a vir. E infelizmente essas coisas já cá estão, ainda que de
forma subterrânea e esparsa ou pontual, como este recente artigo no Observador
nos deixa ver. É verdade que ainda há âncoras muito sólidas que
garantem a autenticidade e integridade da criação literária. O
responsável pela Quetzal, Francisco José Viegas, por exemplo, promete
que a sua editora nunca recorrerá a leitores de sensibilidade, pessoas
que, na sua avaliação — com a qual concordo em absoluto —, não são senão
“controladores ideológicos”, destinados a vigiar a “correcção política”
dos textos, coisa que Francisco José Viegas considera “abjecta”. É
igualmente verdade que há mais editores que pensam e actuam como ele,
mas também há quem se posicione de forma diferente. Clara Capitão,
directora editorial da Penguin Random House Portugal, por exemplo,
assume que já recorreu a leitores de sensibilidade para filtrar obras de
autores actuais. Fê-lo para garantir que as abordagens “eram as
correctas e (que) eram inclusivas”, e porque acredita que importam não
apenas os conteúdos, mas também a “forma e a linguagem escolhidas para
os veicular.”
Ou
seja, a pulsão para alterar os textos de acordo com os ditames do
politicamente correcto e a lupa dos leitores woke não é algo que fique
em exclusivo nos Estados Unidos ou nas ilhas britânicas. Já podemos
avistar essa tendência no nosso país e a minha convicção é que ela
também se assumirá cá em força. Assim sendo, talvez os mais velhos
devessem preparar-se para esse embate. E, entretanto, irem fazendo um
esforço pedagógico para explicar aos mais novos a importância de
preservar a autenticidade de obras literárias, sobretudo as de autores
já desaparecidos, que são um produto do tempo em que foram escritas. De
outro modo, essas novas gerações arriscam-se a só conseguir encontrar as
versões originais e autênticas, as velhas edições destes autores
censurados, em alfarrabistas, bibliotecas ou nas estantes dos avós. Sem
acesso a elas ficarão com um léxico mais estreito e com as ideias mais
pré-formatadas.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi

Nenhum comentário:
Postar um comentário