BLOG ORLANDO TAMBOSI
Uma história excepcional ajuda a entender como a monarquia britânica ainda tem fôlego para não só resistir, como encantar e ser popular. Vilma Gryzinski:
Desinteressante,
decepcionante, arrogante, ridículo e até degradante. Exagerado, chato,
insuportavelmente metido a “woke”. Para não esquecer que foi adúltero e
quebrou as promessas feitas no casamento.
E
olhem que estamos resumindo algumas reações de leitores de jornais
conservadores; não vamos nem entrar no que acham os fãs do Guardian e os
republicanos militantes, uma pequena minoria que quer botar fogo no
parquinho real, desfilando com cartazes que gritam “Não é meu rei”. A
minoria é pequena mesmo: com alguns altos e baixos, a abolição da
monarquia nunca é defendida por mais de 20% da opinião pública e os que
são às ruas com essa bandeira entram mais no capítulo das
excentricidades britânicas.
A pesquisa mais recente dá 62% de aprovação popular a Charles, de deixar políticos de qualquer país babando de inveja.
Aprovar não significa isentar de críticas.
Apesar
do grupo de fieis jornalistas que cobrem a família real e compram as
pautas encomendadas pelos assessores de imprensa — “Um rei que tem
pressa”, é uma das favoritas —, Charles chega à coroação e sagração cheio de restrições, inclusive do público que deveria ser o mais fiel, os monarquistas convictos.
Muitos
atribuem os arroubos politicamente corretos ao excesso de desejo de
parecer inclusivo e outros adjetivos da moda, com “concessões” como
diminuir drasticamente o número de aristocratas convidados para a
cerimônia na abadia de Westminster, enxugar o percurso de carruagem e
abrir espaço para pessoas comuns que tenham se destacado por atos
meritórios — ou que simplesmente portem as variedades étnicas e
religiosas adequadas a um ambiente cheio de diversidade.
É
simpático e positivo incluir no pacote das comemorações um coral gay e
outro formado por deficientes auditivos que cantam em língua de sinais.
Até representantes do zoroastrismo estarão presentes entre os diferentes
líderes religiosos.
Mas
o povão mesmo gosta é do cerimonial incomparável no qual tantos
projetam orgulho nacional e um pendor pela excepcionalidade, fruto de
uma história extraordinariamente rica e complexa — ambos , sentimentos
proibidos pelos padrões atuais.
O
roqueiro Nick Cave — sim, ele mesmo — explicou com verve por que, como
australiano, estará lá entre os convidados deslumbrados do rei:
“Tenho
um apego emocional inexplicável pela família real — a bizarrice, a
natureza profundamente excêntrica da coisa toda, que reflete
perfeitamente a estranheza única da própria Grã-Bretanha”.
Se um pós-punk gosta do espetáculo, imaginem o resto.
É
por causa desses sentimentos, concentrados na figura do monarca, seja
uma rainha venerada como Elizabeth II, seja seu filho muito menos
popular, que as pesquisas de opinião devem ser encaradas com um certo
ceticismo.
Por
exemplo, uma delas diz que 64% do público britânico ou não liga a
mínima (29%) ou não se importa muito (35%) com a coroação em si.
Significaria isso que a monarquia vai mal das pernas e não tem muito futuro pela frente? De jeito nenhum.
De
modo geral, o sistema funciona bem para representar o país – e lhe
conferir um soft power, um poder de imagem incomparável. É este doce
poder que leva diferentes governos, estes sim eleitos pelo povo, sejam
de esquerda ou de direita, a usar os membros da família real como os
melhores relações públicas do mundo, enviados para abrir portas ou
celebrar bons negócios nos países onde o reino tem interesses
comerciais.
Um
rei cheio de medalhas, embora a maior batalha de sua vida tenha sido
contra a primeira mulher, Diana, e uma rainha de chapelão são figuras
disputadas na maioria dos países – e mais ainda naqueles que estiveram
sob domínio do império onde o sol nunca se punha. Como tudo o mais hoje
em dia, a história do império está sendo revisada, para pior, e embora
muitos dos dominados não concordem com defensores célebres e algo
exagerados como John Stuart Mill (o período colonial na Índia não só
“teve a mais pura das intenções, como foi um dos atos mais beneficentes
jamais conhecidos pela humanidade”), ainda se encantam com os
ex-dominadores.
Significaria isso que o jogo está garantido para as cabeças coroadas? De jeito nenhum.
Os
integrantes “ativos” da família real têm que mostrar serviço todo dia,
quando não estão em seus longos recessos. Ganhar constantemente os
favores da opinião pública, da qual depende sua sobrevivência, implica
apertar um oceano de mãos, receber uma fila interminável de convidados e
ir a incontáveis cerimônias, desde inauguração de feirinhas agrícolas
até o batizado de navios – todos eles lançados ao mar com o nome
precedido pelo HMS, embarcação de sua majestade, simbolizando como a
figura do rei ou da rainha ainda tem na Grã-Bretanha uma importância sem
comparação com as outras monarquias europeias. As Forças Armadas, a
moeda, os selos e até os cisnes circulam sob a designação “real”.
Esse
serviço tem um preço e a monarquia britânica é a mais cara de todas.
Custa entre 107 e 158 milhões de dólares em verbas públicas por ano. A
mais barata, entre as tradicionais, é a monarquia espanhola, a modestos
8,7 milhões.
Como
o valor do mencionado soft power não pode ser convertido em dinheiro,
embora seja muito alto, a monarquia opera num plano indefinido, onde
interagem fatores como história, tradição, celebridade, patriotismo e
até moda. Que mulher não quer ver o que Kate, agora princesa de Gales,
usará, um segredo que ela conseguiu guardar mais até do que seu vestido
de casamento, vazado antes da hora?
Os
defensores da monarquia acreditam que ter um determinado DNA, que mesmo
de maneira extremamente acidentada remonta aos reis saxões de mil anos
atrás, é melhor do que deixar as funções de chefe de estado nas mãos de
um político eleito. Dependendo das inclinações políticas, dizem
“Imaginem um presidente Tony Blair”, o trabalhista que se tornou odiado
pela própria esquerda ao fazer uma opção preferencial pelos Estados
Unidos e a invasão do Iraque, ou “Imaginem um presidente Boris Johnson”,
o conservador que a direita tradicional execra.
Subjacente
a esse sentimento está a ideia de que é melhor suportar gente nascida
no privilégio e na riqueza do que arrivistas que querem absconder
valiosos presentes de Estado ou comprar sofás de 65 mil reais.
Quando
Pedro II foi sagrado e coroado, em 18 de julho de 1841, muitos dos
rituais foram exatamente iguais aos montados em Westminster. Ele recebeu
a coroa imperial do Brasil, com oito arcos de ouro — reservados a
imperadores —, 639 diamantes e 77 pérolas. O cetro imperial tinha o
animal heráldico da sua dinastia — a serpe, semelhante a um dragão —, e
2,5 metros de comprimento. A orbe encimada pela cruz era praticamente
idêntica à inglesa, como a de todos os reis da cristandade. Também
recebeu duas espadas, a mão da justiça e o anel da coroação. Sentou-se
num trono inspirado no de Napoleão. E foi ungido com óleo santo, pelo
bispo do Rio de Janeiro, na mão e nos ombros, outra tradição cristã que
pretende evocar a sagração bíblica do rei Salomão.
É possível imaginar tudo isso acontecendo hoje no Brasil?
Claro
que não. E até na Inglaterra há dúvidas se o príncipe William terá,
futuramente, uma coroação cheia de obscuras tradições como a do pai, com
rituais medievais como o das diferentes vestes que Charles terá
colocadas por cima do uniforme. Uma é o manto imperial, uma peça com
bordados prodigiosos, feita para a coroação de seu avó, George VI. Outra
é chamada, em latim, de Colobium Sindonis, uma túnica simples de linho
branco, sem mangas, para significar a pureza diante de Deus depois da
sagração com óleos santos. E, claro, tem ainda a Supertunica, tecida com
fios de seda e pequenos pedaços de ouro.
Nada
disso seria necessário: Charles já é rei, conforme a proclamação feita
em seguida à morte da mãe. Mas talvez uma das vantagens da monarquia
seja a de fazer o que não é necessário, criar uma ponte para um passado
comum, forte o suficiente para se projetar até os dias de hoje e
sobreviver a alguns dos piores espécimes da humanidade, quando não casos
perdidos como o de George III, o rei louco (na verdade, afetado por
alucinações decorrentes de uma rara doença hematológica chamada
porfíria) que perdeu, literalmente, a América. Ricardo III matou o irmão
e dois sobrinhos para ganhar o trono, Henrique VIII decapitou duas
esposas. O que são aventuras extraconjugais e outros escorregões
comparados a isso?
Os
complicados rituais de amanhã foram ensaiados numa réplica da abadia
feita no Palácio de Buckingham para que nada dê errado, inclusive a
participação das “crianças”, os três filhos de William e Kate. Um ensaio
in loco foi feito na quarta-feira. O organizador, o duque de Norfolk,
não deixa nada ao acaso, como fez com as cerimônias fúnebres da rainha
Elizabeth, simuladas num galpão da Força Aérea. Sua família coordena
esse tipo de cerimônia desde 1386.
Os
assessores de imprensa fizeram uma blitz que vai desde um documentário
da BBC narrado em primeira pessoa por Charles, até declarações do
enteado, Tom Parker Bowles, que elogiou o rei como “um homem gentil, bom
e inteligente” — ao contrário do filho Harry, que vive falando mal do
pai.
Houve
um certo exagero. Alguém precisa saber que Charles não toma água entre
as duas refeições feitas durante o dia — o desjejum e o chá das cinco,
pulando o almoço — para não ter que ir ao banheiro ao longo de seus
múltiplos compromissos?
Com
todas as restrições, os convites para a coroação e outras cerimônias
comemorativas foram disputadas a tapa. Dá prestígio ser convidado e,
para os mais entusiasmados, até um friozinho na espinha, assim resumido
pelo cantor Lionel Ritchie resumiu: “Alguém me belisque, estou tentando
manter a cabeça fria”.
O
líder do Partido Trabalhista, com seu histórico de esquerda, Keir
Starmer, possível futuro primeiro-ministro, usa o título de “Sir” como
se fosse um lorde (esses títulos são “recomendados” por
primeiro-ministros em fim de governo). Estará bem na frente do reduzido
bloco de políticos convidados.
Michelle
O’Neill, vice-presidente do Sinn Fein, o braço político do IRA, os
rebeldes republicanos da Irlanda do Norte que explodiram o adorado tio
de Charles, o conde de Mountbatten, aceitou correndo o convite. Quando a
rainha morreu, ela fez o beija-mão ao novo rei. Aliás, derrapou na
etiqueta e, ao ser cumprimentada, agarrou as duas mãos de Charles,
desmanchando-se em sorrisos.
O
maior risco à monarquia vem justamente dos componentes insatisfeitos do
Reino Unido — além da Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales. Se
algum dia se descolarem da união feita sob o domínio da Inglaterra, o
reino ficará tristemente encolhido. Num dos raríssimos, embora
cuidadoso, movimentos políticos feito em público pela rainha, esteve seu
comunicado apelando a todos para que “pensassem cuidadosamente”, na
véspera do plebiscito pela independência da Escócia, em 2014. A proposta
foi rejeitada pela maioria dos escoceses, embora os separatistas façam
tudo para que haja nova votação.
Essa
foi uma prova da influência, mesmo hoje, de uma monarquia cuja
história, basicamente, consistiu em ceder poder, desde que os barões
arrancaram a Carta Magna do rei João Sem Terra, em 1215, codificando o
primeiro documento que garante direitos como o de não ser preso
arbitrariamente.
A
virada sem caminho de volta aconteceu em 1610, quando a monarquia foi
restaurada e o mesmo Parlamento que havia aprovado a decapitação do rei
Charles I entronizou seu filho, o segundo Charles, depois de uma década
em que se impôs uma espécie de ditadura militar tão puritana que chegou a
proibir o Natal por excesso de espírito festivo.
Detalhe:
o rei passou a depender do Parlamento para verbas destinadas a
financiar guerras e outras atividades essencialmente reais. Uma vez que
a comissão de orçamento conseguiu a chave do cofre, o poder dos
monarcas, mesmo dos que se achavam imbuídos de direito divino, só
diminuiu, num lento e orgânico processo rumo à democracia parlamentar
vigente desde o século XIX, com a abertura, em 1832, do direito de voto a
pequenos proprietários, comerciantes e inquilinos, e a implantação do
voto universal em 1918.
No
fim do mês passado, integrantes do pequeno movimento antimonarquista,
nada criativamente chamado República, começaram a vaiar Charles e
Camilla quando chegaram para um compromisso público em Liverpool.
Espontaneamente, crianças de uma escola que aguardavam os visitantes na
rua romperam num coro unânime: “He is our King., “Ele é nosso rei”. As
vaias foram abafadas.
Uma
manifestação dessas não tem preço. Nem atitudes ridículas como
“convidar” o público a jurar lealdade a Charles diante da televisão
conseguem superar o “apego inexplicável”, nas palavras de Nick Cave,
pela monarquia.
Os
antimonarquistas estarão presentes entre o público que assistirá o
cortejo de Charles e Camilla, mas os corações nacionais tenderão a se
inclinar pelo rei sem muito charme que recebe a coroa numa idade em que a
maioria das pessoas já está aposentada, casado com uma mulher que
muitos não querem tratar como rainha, exagerado na autopromoção e nos
arroubos politicamente corretos. Sem falar nos rotundos “dedos de
linguiça” que ele tentou disfarçar nas fotos oficiais.
Cheio de defeitos, sim, mas rei. E assim continua enquanto o povo quiser.
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi

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