blog orlando tambosi
Outro diferencial do Brasil em relação à Europa é que aqui, nessa fase, a diamba não se tornara droga chique de poetas boêmios. Era coisa de preto pobre com a qual os jovens românticos não quiseram se misturar. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Já
que no último texto entramos na seara da botânica, dos costumes e da
inexorabilidade tão amada pelos darwinistas sociais, aproveitemos o
motim das vítimas da sociedade para falar dela, que, segundo os amantes
da ciência, “é natural, não vai te fazer mal”: a maconha.
Recentemente
li sobre a chegada da Cannabis sativa ao Brasil em A história da
maconha no Brasil, de Jean Marcel Carvalho França. O livro acaba
consistindo num eloquente desmentido da inexorabilidade, porque o uso da
maconha já foi um hábito consolidado entre negros pobres, então o
proibicionismo conseguiu mudar a moral social e reprimir esse costume,
até que, de repente, com a contracultura, a maconha voltou com tudo por
meio dos universitários. Só aí, após uma proibição eficaz, o vício em
maconha virou uma coisa inexorável que não adianta proibir.
Vou
tentar resumir a história. Todo povo, por mais que primitivo, inventa
um jeito de ficar alto. Entre os nossos ancestrais europeus, a droga que
proporciona isso é o álcool. Há uma ou outra aparição do uso do cânhamo
como droga na Antiguidade, sendo os citas descritos por Homero os mais
notórios. Mas esse uso do cânhamo sempre foi esporádico na Europa até
Napoleão chegar ao Egito (a Idade Média conheceu a planta vinda do
Oriente, Santa Hildegarda de Bingen chegou a escrever sobre ela, mas os
cristãos ocidentais não deram muita bola para a novidade). No Egito, há
muçulmanos. O islamismo proíbe o álcool, então a droga dos muçulmanos do
norte da África era o haxixe, feito de maconha, e comido para dar
barato. O mundo muçulmano se espalha desde a África até a Índia e suas
redondezas. Assim, em Goa, os portugueses encontraram indianos comendo o
bangue (isto é, a maconha) para ficarem risonhos e brincalhões, ou para
conseguir dormir caso sofressem de insônia. Os registros detalhados do
uso do bangue pelos indianos foram feitos pelo médico português Garcia
d’Orta (1501-1568). Tudo isso remete mais ao brisadeiro (o brigadeiro de
maconha) do que ao cigarro de maconha.
Como
a maconha chegou ao Brasil? O grande interesse dos portugueses pela
planta se devia à sua fibra de excelente qualidade, que dava cordas
muito resistentes e perfeitas para o fabrico de caravelas. Por isso os
portugueses tentaram introduzir o plantio de cânhamo (maconha é anagrama
de cânhamo) em suas possessões a fim de deixar o Império Português
autossuficiente. No Brasil, a primeira tentativa foi na Ilha de Santa
Catarina, mas os ancestrais pescadores dos manezinhos não se revelaram
bons plantadores de cânhamo. A iniciativa foi transferida para Pelotas
(RS), onde tampouco deu certo, e por fim para o Vale do Rio dos Sinos
(RS), aonde os colonos alemães chegaram a tempo de encontrar uma
plantação decadente. Essas tentativas ocorreram no século 18.
Outro
ponto de encontro entre o mundo islâmico e o Império Português é a
África. Sabe-se que os africanos subsaarianos aderiram ao uso do cânhamo
em algum momento entre os século 13 e 16. Assim, não se sabe quem levou
o cânhamo para lá primeiro: se as caravanas islâmicas que atravessavam o
Saara rumo ao Oceano Índico, ou se os portugueses, que, com suas rotas
marítimas, comunicavam Portugal, Brasil, África Subsaariana, Índia e
China. Sozinhos ou não, os portugueses levaram o cânhamo para Moçambique
e Angola, sendo que nesta última a planta adaptou-se muito bem e caiu
no gosto da população.
Diferentemente
dos beduínos, porém, os negros fumavam o cânhamo, em vez de comê-lo. O
historiador não explica por que eles fumavam em vez de comer; assim,
acrescento que isso tem todo o jeito de ser coisa de lusófono – porque o
europeu aprendeu com o índio a fumar. O tabaco é nativo da América, e
os índios inventaram a piteira (palavra de origem tupi com sufixo
português), que originalmente era um canudinho no qual se enfiava o
tabaco para fumar. Os africanos fumavam maconha com cachimbo (que é uma
palavra de origem bantu). Não sei das origens do cachimbo, mas podemos
supor, já que o historiador não falou nada, que o hábito de fumar
maconha talvez tenha surgido como um substituto improvisado para o
tabaco. Vale apontar que o tabaco também caiu no gosto dos africanos
negros, pois esse era um dos produtos exportados pelos engenhos baianos
que comerciavam escravos diretamente com reinos africanos livres do
Golfo do Benim.
Assim,
são duas questões bem diferentes, as que o historiador se propõe a
responder: quem trouxe o plantio de cânhamo para o Brasil? E quem
introduziu o uso como droga? A primeira é que os portugueses trouxeram,
no século 18, com a finalidade de produzir cordas para as suas
importantíssimas embarcações. Quanto ao uso como droga, é difícil bater o
martelo porque a maconha se tornou uma droga de marinheiros, mas é
inegável que, no Brasil, o hábito de fumar maconha era associado aos
negros. Não existia a palavra “maconha”. O termo culto, de origem
latinha, é cânhamo. Os nomes populares do cânhamo nos séculos 19 e
meados do 20 eram “diamba”, “pito de pango” e “fumo d’Angola”. Diamba é o
nome pelo qual os angolanos chamam a maconha até hoje, e Pango,
coincidência ou não, é o nome de uma cidade angolana.
Voltemos
a Napoleão. Sua campanha egípcia levou uma porção de franceses ao Egito
e, assim, pôs uma porção de franceses em contato com o milenar haxixe
dos beduínos islâmicos. Em suma: ela fez o mesmo percurso social que a
coca, que passou de erva tradicional, usada por pais e avós, a mania
enlouquecedora de degenerados, quando os europeus do 19 tiveram contato
com ela (escrevi sobre isso aqui).
No entanto, o cânhamo não caiu no gosto dos psiquiatras, como a
cocaína. Em vez disso, virou modinha de poetas e, portanto, de qualquer
alma que se pretendesse sensível e refinada. Virou moda entre os jovens
europeus de classe alta, e assim ficou até o começo do século. Quando os
pais ficaram desesperados com seus filhinhos se entupindo de haxixe, a
coisa virou assunto de polícia e de psiquiatria.
No
Brasil, os psiquiatras eugenistas, que ganharam mais poder com o Estado
Novo, não demoraram a se preocupar com os efeitos da diamba sobre a
saúde da raça brasileira. Após a Segunda Guerra (na qual os EUA usaram
cânhamo na indústria naval), o Brasil assinou tratados internacionais
capitaneados pelos EUA que visavam à erradicação do cânhamo. Assim, na
primeira metade do século o Estado brasileiro se empenhou em combater um
costume arraigado de boa parte da sua população, além de brigar contra a
própria natureza. O cânhamo nascia nas ruas do Rio de Janeiro. Na obra
Nordeste, Freyre apontava que os engenhos de cana de açúcar, quando não
estavam produzindo açúcar, produziam tabaco, cachaça e diamba para
consumo próprio nas “férias”. Os documentos policiais dão conta de um
velhinho encrencado com a polícia por plantar no quintal a diamba que
ele usava “desde menino”. Em terreiros, o fumo d’Angola era usado com
finalidade ritualística. Ainda assim, a mentalidade da população
brasileira mudou; a diamba passou de familiar a terrível. Nenhum pé
cresceria mais à toa, como mato.
Outro
diferencial do Brasil em relação à Europa é que aqui, nessa fase, a
diamba não se tornara droga chique de poetas boêmios. Era coisa de preto
pobre com a qual os jovens românticos não quiseram se misturar. O
máximo que havia era o “uso medicinal” de cigarrilhas de cânhamo para
asmáticos. Esse era o uso de classe média: discreto e sem alarde.
Na
segunda metade do século 20, tudo muda de novo, desta vez com a
Contracultura. Agora os hippies da Contracultura vendiam a maconha como
um jeito de se tornar um rebelde sem se levantar do sofá: “Assim que dá o
primeiro trago, você se transforma em inimigo da sociedade”, como disse
em 70 o ativista contracultural Jerry Rubin (por óbvio, quem fumar
maconha para ser revolucionário precisará fumar sempre, sob pena de
deixar de ser revolucionário. Drogar-se para manter uma identidade é
algo sem precedentes na história pré-moderna, e é bem diferente de se
drogar por diversão). De alguma maneira mais misteriosa ainda, usar
maconha fazia do jovem parte da badaladíssima “ameaça comunista” – e foi
nessa época que a esquerda americana abandonou seu tradicional foco nas
reivindicações trabalhistas para se ensimesmar na subjetividade
freudiana.
No
Brasil, os psiquiatras do Instituto Pinel se descabelaram com os jovens
que queriam macaquear tudo o que vinha dos Estados Unidos. Depois do
sucesso do Estado Novo no combate à diamba, o consumo da “maconha” (só
agora se usava o anagrama de “cânhamo”) era entendido como uma
importação.
Mas
dessa vez os psiquiatras é que ficaram doidos à toa. Porque os artistas
da Tropicália, os jornalistas descolados, os universitários
trotskistas, todos, aderiram à maconha como a nova droga. Perante os
filhos maconheiros, os pais que buscassem ajuda especializada
encontrariam na pedagogia conselhos piegas de aceitação incondicional e
não repressão. Como cereja do bolo, a Nova Esquerda, após muito estudar a
repressão à diamba no Estado Novo, diria que toda repressão à maconha
era uma questão de raça e classe, porque os maconheiros eram pretos e
pobres.
E
hoje ainda temos de ouvir das ONGs estrangeiras que o uso de todo tipo
de droga é inexorável, de modo que é necessária uma “redução de danos”
indiscernível da apologia.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário