BLOG ORLANDO TAMBOSI
Lembram-se de Hergé e do seu Oliveira de Figueira, o comerciante luso “banha da cobra” que impinge tudo a toda a gente? Sinto-me ofendido, como português, com essa representação do que somos ou fomos? João Pedro Marques para o Observador:
Na
cerimónia de assinatura do protocolo para a criação do Observatório do
Racismo e Xenofobia, a recém-nomeada coordenadora desse organismo, Teresa Pizarro Beleza, disse
ter a “convicção” de que existe racismo estrutural entre nós e
acrescentou, à laia de prova, que até seria estranho ele não existir
aqui “tendo (Portugal) sido um país colonial até há tão pouco tempo”.
Adiantou, também, numa afirmação metida um pouco a martelo, que Portugal
“foi um império colonial que usou o comércio de escravos para
enriquecer”.
Há
vários mal-entendidos nestas declarações de Teresa Beleza e é
importante tentar desfazê-los porque muita da esquerda — e, até, de
alguma direita — pensa total ou parcialmente dessa maneira. Começando
pelo fim, terá Portugal, de facto, usado o comércio de escravos para
enriquecer? E, se assim foi, porque é que sendo o país da Europa
Ocidental que mais transportou escravos negros de África para as
Américas — 4,5 milhões de pessoas — era, quando esse comércio foi
proibido, um país pobre se comparado com a França, a Grã-Bretanha, a
Dinamarca e outras potências coloniais ocidentais? É que a história
humana é um feixe de inúmeras variáveis em interacção e há muitos
factores a ter em conta quando falamos da riqueza e da pobreza dos
países. Acrescente-se que a ideia de que o tráfico de escravos era um
manancial de riqueza é geralmente falsa. Joseph C. Miller mostrou que
até ao início do século XIX o tráfico de escravos luso-afro-brasileiro
era, por norma, um comércio miserabilista de gente que se mantinha
agarrada a ele porque não tinha melhor alternativa.
Mas
ainda que fosse verdade que Portugal tivesse enriquecido com o tráfico
de escravos, qual a relação entre esse suposto enriquecimento e o
racismo estrutural que, na visão da coordenadora do Observatório do
Racismo e Xenofobia, impregnaria o país inteiro? Teresa Beleza
explicará, se assim o entender, mas para já fica a impressão de que
tanto ela como os que como ela pensam, não criaram a convicção de
Portugal ser estruturalmente racista a partir da observação e estudo dos
fenómenos. Deduziram-na de uma teoria geral que, de forma sintética, é a
seguinte: como o país teve um império colonial tem, por força, de ser
estruturalmente racista.
É
verdade que Teresa Beleza também reconheceu que o racismo existe em
todas as partes do mundo, ainda que de maneiras diferentes e com
histórias e lógicas muito diversas. Mas no caso português ele seria
estrutural e decorreria do império colonial. Será verdade? Será
obrigatório e fatal como o destino que país que haja possuído domínios
coloniais nos trópicos tenha de ser estruturalmente racista? Esta
pergunta faz-nos desembocar na questão do lusotropicalismo, um conceito
que, de forma míope, tem sido conotado em exclusivo com o Estado Novo, o
que é um erro. A ideia de que os portugueses tratavam melhor e mais
igualitariamente os povos tropicais, incluindo os escravos, do que os
outros europeus, é muito antiga. Essa convicção — lá temos nós outra
convicção — existia nos séculos XVIII e XIX ou, até, antes, tanto em
Portugal como no estrangeiro, e é tão válida como a actual convicção de
Teresa Pizarro Beleza. E igualmente tão válida como a sua, é a minha
convicção (e, também, a da ministra Ana Catarina Mendes e de outras
pessoas) de que existem racistas em Portugal, sim, mas que o país não é
estruturalmente racista.
Ora
seria bom que pudéssemos passar deste confronto de convicções, de outro
modo estaremos apenas a chover no molhado das respectivas crenças.
Infelizmente, o Observatório do Racismo e Xenofobia não parece ir nessa
direcção nem querer subir esse degrau. Li, há dias, no DN, um artigo de Fernanda Câncio
que conta que, no passado Carnaval, as escolas do concelho de Santarém,
seguindo, ao que consta, directivas da Câmara Municipal, pediram aos
seus alunos que se mascarassem de chineses, ciganos, africanos, índios,
como forma de promover a interculturalidade. A esmagadora maioria dos
alunos ou de quem vela pela sua educação aderiu ao pedido e houve muitas
crianças que apareceram com as caras pintadas de castanho (blackface),
outras com olhos à oriental ou com cabeleiras afro e saiotes de palha,
etc.
Consultada
sobre o assunto Teresa Pizarro Beleza terá dito que o caso evidenciava
“uma séria falta de sensibilidade, de respeito e até talvez de
inteligência (sic)”, e que o carácter de tais “brincadeiras”, ainda que
talvez feitas na maior “inocência”, era “provavelmente ofensivo”,
“historicamente explicável” e “obviamente racista”. A mim parece-me
pouco razoável classificar imediatamente este episódio como racista,
mas, ao que parece, o episódio de Santarém terá reforçado as convicções
de Teresa Beleza, que assim se perpetuam, e não saímos deste círculo
vicioso. Não sei se, antes de formar essas convicções, Teresa Beleza (ou
alguém por ela) teve o cuidado de ouvir os intervenientes e decisores,
mas suspeito que não, o que, a ser assim, é pena e lamento. Os woke,
porém, rejubilaram com as declarações de Teresa Beleza e aqueles que
tinham criticado a sua nomeação para coordenadora do Observatório por
ser… branca e especialista noutros assuntos, enfunaram as velas de
entusiasmo ao constatarem que tinham nela uma aliada.
Eu
teria preferido um Observatório menos impulsivo que começasse por
estudar aprofundadamente as coisas, para separar o trigo do joio, em vez
de lhes aplicar pré-conceitos que as rotulam e condenam à partida. Sim,
o blackface foi muitas vezes usado para ridicularizar os negros, mas
será obrigatório que tenha de ser sempre assim? E quanto à indumentária?
Terá de ser ofensiva por ser arcaizante? Se, no Carnaval, a escola dos
meus netos pedisse para os mascarar de Gengis Khan, seria fácil e
educativo explicar-lhes que os mongóis actuais não andam assim pelas
ruas, mas que representá-los como se vestiam na Idade Média não é
ofensivo. Se, sendo portugueses e brancos, se mascarassem de outros
portugueses brancos de antanho, como, por exemplo, os saloios de 1900,
seria isso ofensivo para os que, nos dias de hoje, são naturais da
Malveira? Julgo que não. Do mesmo modo não deveria ser obrigatoriamente
ofensivo representar as africanas em saiotes e outros trajes que muitas
delas usavam, por exemplo, no século XIX. Isso não tem de ser
necessariamente racismo.
Usa-se
essa palavra a torto e a direito e muitas vezes mal. Há várias
definições de racismo. Aqui, para respeitar o contexto e porque concordo
com ela, vou cingir-me à que a própria Fernanda Câncio propôs e utilizou
em 2019. Para Câncio racismo é uma “opinião” segundo a qual existiriam
“raças humanas”, e, mais do que isso, uma hierarquia entre elas, com
“raças superiores e inferiores”, raças essas que, segundo os racistas,
definiriam as características dos indivíduos que a elas pertencessem. Ou
seja, o racismo implica uma generalização cega e abusiva — todos os
chineses têm tais e tais características, etc. — e uma hierarquização;
implica também uma conotação ou intenção negativa para com alguns dos
grupos hierarquizados. Ora, não ressalta da iniciativa das escolas de
Santarém que se pretendesse retratar alguns grupos humanos como
inferiores. Mesmo que possa ter havido opções de gosto duvidoso nas
escolas em causa, parece óbvio que a intenção era positiva, isto é, e
ainda que a brincar, o objectivo era tentar colocar as crianças de
Santarém nos sapatos dos outros (neste caso das minorias cigana,
africana, etc.) e promover através dessa representação uma melhor
integração dessas minorias. O tema e o que procurava promover-se era,
repito, a interculturalidade. Que não se perceba isto e que se faça em
redor deste episódio uma tempestade num copo de água, só revela a que
ponto o wokismo resvala constantemente para o radicalismo e a desmesura,
por vezes para a idiotia.
O
wokismo condena e amaldiçoa os estereótipos, queima-os na fogueira,
como os inquisidores de outros tempos, mas o relacionamento humano usa
estereótipos, sobretudo para fazer humor sem que isso signifique insulto
e implique ofensa. Lembram-se de Hergé e do seu senhor Oliveira de
Figueira, o comerciante português “banha da cobra” que impinge tudo a
toda a gente? Sinto-me ofendido, como português, com essa representação
do que somos ou fomos? Não, acho-a divertida e, até, com uma razoável
dose de veracidade. Convém não perder de vista que as máscaras a que a
iniciativa de Santarém se refere foram pensadas e postas em prática em
tempo de Carnaval e que esse é um tempo que admite e suscita práticas
particulares, que usa muitos estereótipos e que pressupõe e exige algum
sentido de humor.
Eu sei que sentido de humor é coisa que os woke geralmente não têm, e já escrevi sobre isso.
Ainda assim, e no pressuposto de que uma pequena sessão de grupanálise
satírica poderá ajudar a esclarecer e compreender processos, eu
recomendaria a Fernanda Câncio e a todos os woke e aparentados que,
antes de se indignarem com episódios semelhantes ao de Santarém, vissem este pequeno vídeo da BBC
sobre o que é ser sensível em excesso e virtuoso demais — ou seja, ser
woke. Todos ganharíamos se interiorizássemos a lição que dali se colhe.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário