MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 2 de abril de 2023

Norman Borlaug, o herói esquecido.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Como lidar com a incerteza de uma era de rápida mudança tecnológica? Coluna de Fernando Schüler para a revista Veja:


“O mundo se torna desolador”, dizia Heidegger, no início dos anos 50. “Uma nova guerra levaria a Europa a seu fim”, vaticinava o filósofo, inteiramente equivocado. O que se iniciava a desenhar, na verdade, era a União Europeia, quem sabe o maior feito do cosmopolitismo moderno. Heidegger foi o protótipo do pessimismo filosófico. Há o pessimista tecnológico. Um dos que mais faturaram com isso foi Jeremy Rifkin, com seu O Fim dos Empregos, nos anos 90, prevendo que em dez anos a jornada de trabalho iria para trinta horas, e que em mais duas décadas viveríamos os horrores do “desemprego estrutural”. Hoje em dia anda em voga o pessimismo ambiental. Uma das figuras mais proeminentes é Gaya Her­ring­ton, acenando com um colapso civilizacional por volta de 2040. Como faltam apenas dezessete anos, acho que ela tomou um risco exagerado. É sempre bom dar uns quarenta ou cinquenta anos para prever algum tipo de apocalipse. Tempo para o pessoal esquecer, e, claro, vender um bocado de livros e palestras sobre o assunto.

Mesmo o inspirado Yuval Harari entrou na onda. Recentemente, escreveu um artigo no The Guardian começando com a frase-bomba. “A maioria dos empregos que existem hoje pode desaparecer dentro de décadas.” Perfeito, foi assim com os cocheiros, na virada para o século XX. Vale o mesmo para os cubeiros, limpadores de chaminés, datilógrafos e condutores de bigas, todos sumidos. Lá pelas tantas ele conclui: “Até 2050, uma nova classe de pessoas poderá surgir, a classe desocupada”. Quando li aquilo, me lembrei da agricultura americana, que ocupava 40% da mão de obra do país, em 1900, hoje ocupa menos de 2% e a economia vive em pleno emprego. O que mais impressiona é a pergunta final de Harari: “O que esta classe de inúteis fará o dia todo”?. Ele parece desconhecer fatos prosaicos, como o declínio populacional nos países avançados, e parece sugerir que somos uma espécie de estúpidos. Que não criaremos novos negócios, obras de arte ou qualquer coisa melhor do que afundar como zumbis em jogos de realidade virtual, que segundo ele tomarão o lugar da religião.

O título de pessimista do século XX talvez caberia ao economista Paul Ehrlich, que em 1968 lançou o seu Population Bomb. O livro começava com a seguinte frase: “A batalha para alimentar toda a humanidade acabou”. Ele previa fomes terríveis, e fazia uma convocação para um combate ao “câncer do aumento populacional”. O livro vendeu milhões de cópias, inspirou filmes distópicos, como Soylent Green, em 1973, e atiçou a fogueira do pânico global. Seu exato contraponto foi Norman Borlaug, um cientista discreto, a vida inteira dedicado a melhorar a qualidade das sementes do trigo, aplicar tecnologia à agricultura, fazendo dele o grande artífice da “revolução verde”. O curioso dessa história é que ao mesmo tempo em que Ehrlich lançava em grande estilo seu livro-catástrofe, Borlaug andava pela Índia, conduzindo sua tranquila revolução, e o país mais populoso do planeta logo alcançaria a autossuficiência alimentar. Em 1970, Borlaug ganhou seu Prêmio Nobel, por ter sido a pessoa que “mais do que qualquer outro, em nossa época, ajudou a alimentar um mundo faminto”. A história de Ehr­lich e Borlaug, o arauto da catástrofe e o construtor discreto, resume bem o nosso ponto.

O que torna o pessimismo realmente enigmático é sua sistemática agressão aos fatos. Basta ampliar um pouco a lente da história para verificar que todos os anúncios de fim de mundo, de Malthus a Greta Thunberg, erraram feio. Ainda agora saiu um ótimo livro sobre o tema: Superabundance. Seus autores listam cinquenta tipos de recursos básicos, incluindo energia, alimentos e matérias-­primas, e concluem o seguinte: entre 1980 e 2018, a população mundial cresceu 71%, mas “o tempo médio de trabalho necessário para comprar aquele pacote de recursos caiu pouco mais de 70%”. Pessoas produzem novas ideias, são capazes de inovar, e tecnologia aliada aos mercados abertos gera um contínuo ganho de produtividade. Os dados são claríssimos, mas o fato é que não aprendemos.

A razão mais óbvia é a de que o progresso humano é feito de altos e baixos. O ocidente pode ter dado um salto civilizacional, no fim do século XIX à década de 50, mas no meio do caminho houve o nazismo, o fascismo e algumas dezenas de milhões de pessoas morreram nas duas grandes guerras. É perfeitamente previsível que quem via o mundo na virada para os anos 40, na Áustria ou na Alemanha, enxergasse um mundo terrivelmente sombrio. Foi o caso de Stefan Zweig, um dos ícones de minha juventude, que tomou veneno em sua casa de Petrópolis, perto do Carnaval de 1942, deprimido com a destruição da Europa, que tanto amava. Sempre gostei de imaginar que Zweig deveria ter esperado um pouco. Ele teria um extraordinário papel a desempenhar na reconstrução europeia no pós-guerra, poucos anos depois.

Talvez nosso problema consista em como lidar com a incerteza de uma era de rápida mutação tecnológica. Ciclos acelerados de destruição criadora produzem ganhadores e perdedores, oportunidades e riscos, espaços que se abrem e que vão se fechando. Agora mesmo estamos assistindo a um surto desse tipo, com o crescimento vertiginoso da inteligência artificial. De um lado, leio listas e mais listas de funções que se tornarão obsoletas com o ChatGPT, jogando lenha na fogueira nas distopias hararianas sobre os inúteis jogando videogame. De outro, há uma incrível legião de pessoas produzindo obras de arte, revolucionando o aprendizado em sala de aula e criando um infinito número de novos negócios. Negócios que empregarão mais gente, farão crescer a renda, reduzirão ainda mais o preço das coisas e tornarão — para certa inveja de quem já está coroa, como eu — um mundo muito, mas muito melhor do que o nosso. Em especial, e este talvez seja o ponto, se soubermos evitar o “espírito de abismo” e a permanente catastrofização da vida, que parece ter se tornado um dos males de nossa cultura.

Os arautos do caos farão mais sucesso, no curto prazo, mas não tenho dúvida sobre de quem será a vitória quando se fizer a devida “leitura do tempo”, como disse uma vez meu saudoso pai. Vale o mesmo para a revolução digital. “Estamos ingressando em um ‘novo anarquismo’”, leio de um renomado intelectual, “um mundo de teorias conspiratórias, hostil a qualquer relação de confiança”. De outro, que “não há outra atitude no Brasil que não o completo niilismo”, tudo depois de quatro anos de bombardeio sobre o “fim da democracia” no país. Nada disso aconteceu, mas vai aí a perigosa sutileza. Da perspectiva do caos provém o medo. E com ele a paralisia. A permanente sensação de que há um problema com a liberdade, e a partir daí o desejo de controle. O mesmo medo que levou à histeria do “controle de natalidade”, naquele mundo pautado pelas imagens terríveis de Ehrlich, enquanto, no silêncio diligente, tipos como Borlaug, o “herói esquecido”, como foi chamado quando de sua morte, trabalhavam para erguer pontes e nos levar ao futuro. Quem escolheremos para nos inspirar e educar nossos jovens neste mundo nervoso talvez seja uma boa pergunta que cada um pode fazer a si mesmo.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834
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