BLOG ORLANDO TAMBOSI
O primitivismo empresarial azedou a safra gaúcha com o trabalho escravo. José Casado para a revista Veja:
É
época de vindima, de colheita nos parreirais do Vale dos Vinhedos.
Trabalha-se pesado na apanha dos bagos, enquanto turistas desfrutam um
roteiro de ritos seculares dos imigrantes italianos, como a “pisa” de
uvas.
A
safra deste verão azedou, e não foi por mudança climática, acidez do
solo ou descontrole na maturação de viníferas chardonnay, pinot noir,
riesling, labrusca e moscatel. Avinagrou por causa do primitivismo
empresarial nas principais vinícolas, flagradas na manutenção de
trabalho escravo em sua cadeia de produção.
Na
semana passada, quando visitantes chegavam a Bento Gonçalves, a maior
cidade do vale, duas centenas de trabalhadores agrícolas partiam em
ônibus escoltados por policiais. Eram nordestinos, quase todos baianos,
resgatados da servidão.
Estavam
na empreitada de colheita na serra, recrutados por Pedro Augusto
Oliveira de Santana, agenciador de mão de obra das três maiores
vinícolas do país: Aurora, Salton e a Cooperativa Garibaldi. Na noite de
Quarta-feira de Cinzas, três deles procuraram a polícia com o relato de
uma fuga da exploração trabalhista com métodos similares aos de
escravidão.
Em
pouco tempo, o Ministério Público do Trabalho confirmou a detenção dos
homens em acomodações degradantes por uma “dívida” permanente e
crescente por comida — sempre acima do valor da remuneração — e
submissão a uma rotina de repressão, que incluía tortura com choque
elétrico. Santana, conhecido pela longa folha corrida de violações às
leis trabalhistas, livrou-se da prisão pagando fiança de 27 salários
mínimos, ou 36 000 reais.
Em
plena celebração da vindima, Bento Gonçalves mergulhou na voragem de um
escândalo nas videiras plantadas em espaldeira às margens do Rio das
Antas. Nele, parte da elite local se destaca acorrentada — por ação,
omissão ou inépcia — num enredo de escravagismo moderno.
Aurora,
Salton e Garibaldi são estrelas da primeira região brasileira cujos
vinhos e espumantes têm o selo de “Denominação de Origem”. Detêm mais da
metade do mercado nacional e quase dois terços das exportações de
vinhos, sucos e espumantes. Juntas, faturaram 1,5 bilhão de reais no ano
passado, o triplo da receita da prefeitura de Bento Gonçalves.
Beneficiárias
da empreitada de trabalho temporário, as três vinícolas demoraram a
reagir. Quando resolveram, preocuparam-se em demarcar equidistância em
relação à escravatura nos seus domínios.
“As
vítimas são funcionários da empresa que prestava serviços”, defendeu-se
a Aurora em nota pública. “Trata-se de incidente isolado”, alegou a
Salton, em meio a autoelogios como “referência” em sustentabilidade e
direitos humanos. A Garibaldi justificou-se com o “desconhecimento da
situação”, lembrando que “o contrato seguia todas as exigências contidas
na legislação vigente”.
O
Centro de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves produziu uma pérola
do preconceito ao tentar isentar as empresas. Numa lógica tortuosa,
relacionou o trabalho escravo na região à falta de mão de obra e culpou o
programa Bolsa Família pela escassez: “Há uma larga parcela da
população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim,
encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista
que nada tem de salutar para a sociedade”.
Na
vizinha Caxias do Sul, o vereador Sandro Fantinel sugeriu aos
empresários dos vinhedos: “Não contratem mais aquela gente lá de cima
(do Nordeste). Como a única cultura que ‘os baiano’ têm é viver na praia
tocando o tambor, era normal que tivesse esse tipo de problema, ao
contrário dos argentinos que são limpos, trabalhadores e corretos”.
As
vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi começaram março banidas de
exposições no exterior. A incivilidade na serra transformou a vindima
numa colheita de perdas e danos imensuráveis para empresas, a
vinicultura e a sociedade gaúcha, que já teve a terceira maior
concentração de escravos do país — atrás do Rio de Janeiro e Espírito
Santo e à frente de São Paulo, antes da Lei Áurea.
Bento
Gonçalves atravessou o espelho do tempo, num retorno à normalização da
escravidão. A antiga Colônia Dona Isabel dos imigrantes italianos foi
rebatizada em homenagem a um dos heróis do Rio Grande do Sul. Líder do
separatismo gaúcho, Bento foi um defensor da escravidão — como também
eram os seus inimigos protetores do governo imperial, vitoriosos na
Guerra dos Farrapos, conhecida como Revolução Farroupilha.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi

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