BLOG ORLANDO TAMBOSI
Não é função estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou do que considera como ‘saúde’. Artigo do professor Denis Rosenfield, publicado pelo Estadão:
A
Fábula das Abelhas ou Vícios Privados, Benefícios Públicos, de Bernard
de Mandeville, obra clássica do início do século 18, vem a ser publicada
no Brasil graças a uma primorosa edição da Topbooks com o patrocínio do
Liberty Fund. Uma grande lacuna de pensamento será, assim, preenchida.
Esse primeiro tomo, ao qual se seguirá um segundo no próximo ano, é
constituído pela Fábula e por uma série de observações nas quais o autor
desenvolve toda a sua filosofia moral e política. Diria que é um autor
incontornável, sobretudo levando em consideração os valores morais
reinantes na sociedade brasileira e as tentativas políticas e morais de
reformá-los.
Isso
porque Mandeville se inscreve na linha dos pensadores libertinos do
século 17, que são propriamente livres-pensadores, sem nenhum apego a
convenções ou a qualquer tipo de preconceito. Hoje, diríamos que são
politicamente incorretos, críticos sagazes e sarcásticos do que as
pessoas consideram, sob influências religiosas e éticas, como virtudes.
Virtudes,
assim como os vícios, são simples nomes apostos a comportamentos, não
possuindo nenhum valor intrínseco, salvo aqueles que os costumes
vigentes consideram enquanto tais ou, em suas críticas, os reformadores
sociais e políticos. Mandeville foi tido por um deísta, acreditando em
uma noção abstrata de Deus, sem nenhuma crença em uma religião revelada.
Hoje, diríamos um ateu.
A
Fábula é a alegoria de uma colmeia que vive harmoniosamente, onde as
abelhas satisfazem os seus desejos e interesses, sem nenhuma
consideração prévia do bem coletivo. Este surge de suas ações, da
proteção da propriedade, da sua riqueza, do desenvolvimento de uma
economia de mercado, estando as leis a serviço dessas condições. O
resultado é a prosperidade de todos. Como acontece em qualquer sociedade
baseada na livre-iniciativa e no empreendedorismo, nascem desigualdades
sociais e considerações que são politicamente utilizadas por
reformadores (ou revolucionários), que tudo pretendem mudar a partir de
suas próprias convicções dogmáticas. Tomam o poder e partem para uma
reforma dos costumes, com proibições dos mais diferentes tipos, sendo o
“vício” e o “pecado” os objetos de sua fúria destruidora. O resultado é a
decadência dessa nova sociedade e do seu Estado, produzindo a miséria
generalizada. Mensagem principal: toda política deve começar pela
natureza tal como ela é, e não como alguns pretendam que ela deva ser.
A
experiência comunista do século 20 bem mostrou o preço a ser pago pela
imposição à força de reformas políticas. A União Soviética tentou
reconstruir totalmente a sociedade, almejando criar um novo homem, visto
que o antigo seria um mero produto da sociedade capitalista, fundada no
egoísmo e na exploração do outro. Nasceria, graças à violência, um novo
mundo. Partiram para a coletivização da terra, expropriando os kulaks,
que eram nada mais do que agricultores familiares, pequenos e médios
proprietários, reunindo-os em fazendas coletivas sob o jugo dos
comunistas. O novo dever-ser humano/comunista faria a revolução total do
ser humano/capitalista. Resultado: a fome generalizada, o Holodomor na
Ucrânia, genocídio pela fome, com homens, mulheres e crianças vagando
pelos campos e cidades, esquálidos, morrendo como zumbis sem rumo, e os
casos extremos de canibalismo. Mensagem: a propriedade privada não pode
ser desrespeitada e a natureza humana deve ser tomada tal como ela é.
Um
caso particularmente paradigmático da época de Mandeville, na
Inglaterra, era o alcoolismo, objeto dos reformadores que pretendiam
aboli-lo. Era um “vício” a ser extirpado. Acontece que esse “vício”
decorre naturalmente do prazer das pessoas, que têm pleno direito ao
prazer que dele extraem, não tendo o Estado nada a ver com isso. Não é
função estatal corrigir costumes seja em nome da moral, da religião ou
do que considera como “saúde”. Ademais, esse vício alimenta toda uma
cadeia produtiva, começando na agricultura, passando pela indústria e
culminando no comércio, nutrindo os cofres púbicos com os impostos.
Hoje,
o novo “vício” a ser combatido é o cigarro, o bode expiatório da vez.
Em sua forma eletrônica, o vape, por exemplo, é proibido no Brasil, mas é
de uso intensivo em festas, podendo ser comprado em qualquer lugar. A
proibição, no caso, só tem o efeito colateral do contrabando, do mercado
ilegal, sem que nenhum imposto seja arrecado. O mesmo já começa a
ocorrer com carnes, comidas gordurosas ou salgadas e assim por diante.
Amanhã será o “imposto do pecado” ou do “luxo”. Mensagem: o prazer das
pessoas e a satisfação dos seus interesses não deveriam ser submetidos à
prévia autorização ou punição estatal.
Mensagem
final: as pessoas têm todo o direito ao “egoísmo”, a gostarem de si,
sem que o Estado tenha o menor direito de imiscuir-se nesse domínio.
Sejam libertinos, sejam politicamente incorretos. Eis a mensagem
mandevilliana e minha deste novo ano que se inicia. Feliz 2023!
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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