MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

O povo na posse, de D. Pedro a Lula.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

Um negro, um indígena e um mulato estiveram presentes na aclamação do imperador, em 1822. A ideia foi, provavelmente, de José Bonifácio, um defensor da integração entre os povos. Paulo Rezzutti para a revista Crusoé:


No domingo, 1º de janeiro de 2023, os noticiários do mundo todo voltaram-se para a posse do novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Um dos momentos mais esperados foi a tradicional passagem da faixa presidencial. O ato em si, a tradição de marcar a passagem de um detentor temporário do poder para outro, pouco ou nenhum efeito prático produz. Entretanto, a expectativa na ocasião dizia respeito a quem iria passar a faixa, uma vez que o antecessor no cargo deixou o país horas antes rumo à Flórida.

No fim, o que vimos foi o atual presidente eleito subir a rampa ao lado de diversas pessoas. Além da primeira-dama Janja da Silva, organizadora da posse, e da cadela Resistência, estavam com o presidente Lula o cacique de etnia kayapó e ativista da causa indígena Raoni Metktire, de 90 anos; Flávio Pereira, de 50 anos, artesão paranaense; Francisco Carlos Nascimento e Silva, de 10 anos, nadador do clube Corinthians, morador da periferia de São Paulo; o metalúrgico e DJ Weslley Viesba Rocha, de 36 anos, natural de Diadema (SP); o professor paranaense Murilo de Quadro Jesus, de 28 anos; a cozinheira paranaense Jucimara Fausto dos Santos, de 46 anos; Ivan Baron, de 24 anos, natural do Rio Grande do Norte, influenciador da inclusão de pessoas com deficiência; e Aline Souza, de 33 anos, presidente da Rede Centcoop (Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis) do Distrito Federal.

A diversidade dos presentes buscou representar a pluralidade do povo brasileiro. Após a subida da rampa, a faixa presidencial passou de mão em mão, terminando com Aline, uma mulher negra, que a vestiu no presidente.

Essa não foi a primeira vez na nossa história em que negros, indígenas e mulatos, que formam a grande maioria excluída do povo brasileiro, participaram do cerimonial de posse de um líder nacional. Há mais de 200 anos, em 12 de outubro de 1822, o país aclamou o seu primeiro líder, o imperador d. Pedro I, até então príncipe regente do Reino do Brasil. O ato ocorreu no Rio de Janeiro, na atual praça da República, então conhecida como Campo de Santana, que, na época, foi rebatizada como Campo da Aclamação. Ali, em um pavilhão montado inicialmente para as festividades da aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves, o seu filho, D. Pedro, foi aclamado primeiro governante do Brasil independente “pela vontade dos povos”.

Após o Grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, o então presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, Clemente Pereira, despachou para as câmaras de outras cidades um manifesto afirmando que o Rio de Janeiro desejava aclamar D. Pedro como imperador do Brasil. A maioria concordou, e assim o povo, ou, no caso, a elite econômica da época, por meio de seus representantes eleitos, decidiu colocar o então príncipe no trono.

Para a data da cerimônia, realizada diante de toda a capital do Brasil, foi escolhido o aniversário de D. Pedro, 12 de outubro. Diferentemente do clima de Brasília na posse do presidente Lula, quente e ensolarado, no dia da aclamação de D. Pedro, chovia no Rio de Janeiro, e a festa, ao contrário da gravura feita pelo pintor francês Jean Baptiste Debret, ocorreu debaixo d’água.


D. Pedro saiu do Paço da Quinta da Boa Vista para o Campo de Santana num cortejo formado por sua guarda de honra, composta por oficiais fluminenses e paulistas, que futuramente daria origem aos Dragões da Independência, presentes nas posses dos presidentes da República até hoje. Adiante da carruagem que conduzia o imperador d. Pedro, a imperatriz d. Leopoldina e a princesa imperial Dona Maria da Glória, seguiam três moços de estribeira: um indígena, um mulato e outro negro. A presença dessas três raças foi, provavelmente, uma ideia do ministro José Bonifácio, um defensor do fim da escravidão e da integração entre os povos do Brasil.

Além da ausência da chuva, na gravura de Debret há um branqueamento europeizante do evento. D. Pedro e a corte aparecem no alto de uma varanda saudando a multidão amorfa. Nas palavras de Otávio Tarquínio de Souza, D. Pedro era aclamado pelo “Brasil inteiro, no colorido de suas raças, e sub-raças, os brancos ou aparentemente brancos, das classes dirigentes, e os mulatos, negros e índios, em maior número, da gente humilde cujo status pouco se alteraria, a despeito da Independência e do Império Constitucional”.

A representação dessas raças na cerimônia de 1822 era uma idealização romântica desses povos, que na prática eram dominados e escravizados pelos brancos. Anos antes da Aclamação de D. Pedro, ainda durante o governo de D. João no Brasil, foi declarada a chamada “Guerra Justa” contra os indígenas. Ao menos três Cartas Régias emitidas por D. João entre 1808 e 1809 autorizavam o ataque contra diversas etnias indígenas que “recusavam a civilização”. A posse, a integração e a segurança do território eram necessárias, aos olhos dos dominadores, para transformar o Brasil na sede do Império Ultramarino Português. Quanto ao negro e ao mulato, também presentes na cerimônia, somente 66 anos depois é que a escravidão seria totalmente extinta no país.

O Brasil nasceu como uma colônia de exploração, domínio onde a metrópole buscou a sua riqueza durante mais de 300 anos. Ao longo desse período, diversos povos serviram de mão de obra para essa empreitada por meio da escravização de seres humanos, desde os primeiros anos da colonização, no século XVI, e ao longo de décadas após a Independência. Embora extinta em 1888, um ano antes do fim do período monárquico, os reflexos da escravidão perduram até hoje.

É muito louvável ver essas populações, por tanto tempo excluídas, participarem da festa da democracia, em meio a um cerimonial que deu a elas papel ativo no processo de transferência de poder. Resta agora exercer a vigilância democrática sobre o novo governo, para que a promessa delineada nesse simbolismo tão forte não seja analisada daqui a 200 anos como algo meramente ornamental, e sim como o ponto de partida para uma política pública que vise ao alcance da cidadania plena por todos os segmentos da nação brasileira.

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