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Um negro, um indígena e um mulato estiveram presentes na aclamação do imperador, em 1822. A ideia foi, provavelmente, de José Bonifácio, um defensor da integração entre os povos. Paulo Rezzutti para a revista Crusoé:
No
domingo, 1º de janeiro de 2023, os noticiários do mundo todo
voltaram-se para a posse do novo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula
da Silva. Um dos momentos mais esperados foi a tradicional passagem da
faixa presidencial. O ato em si, a tradição de marcar a passagem de um
detentor temporário do poder para outro, pouco ou nenhum efeito prático
produz. Entretanto, a expectativa na ocasião dizia respeito a quem iria
passar a faixa, uma vez que o antecessor no cargo deixou o país horas
antes rumo à Flórida.
No
fim, o que vimos foi o atual presidente eleito subir a rampa ao lado de
diversas pessoas. Além da primeira-dama Janja da Silva, organizadora da
posse, e da cadela Resistência, estavam com o presidente Lula o cacique
de etnia kayapó e ativista da causa indígena Raoni Metktire, de 90
anos; Flávio Pereira, de 50 anos, artesão paranaense; Francisco Carlos
Nascimento e Silva, de 10 anos, nadador do clube Corinthians, morador da
periferia de São Paulo; o metalúrgico e DJ Weslley Viesba Rocha, de 36
anos, natural de Diadema (SP); o professor paranaense Murilo de Quadro
Jesus, de 28 anos; a cozinheira paranaense Jucimara Fausto dos Santos,
de 46 anos; Ivan Baron, de 24 anos, natural do Rio Grande do Norte,
influenciador da inclusão de pessoas com deficiência; e Aline Souza, de
33 anos, presidente da Rede Centcoop (Central das Cooperativas de
Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis) do Distrito Federal.
A
diversidade dos presentes buscou representar a pluralidade do povo
brasileiro. Após a subida da rampa, a faixa presidencial passou de mão
em mão, terminando com Aline, uma mulher negra, que a vestiu no
presidente.
Essa
não foi a primeira vez na nossa história em que negros, indígenas e
mulatos, que formam a grande maioria excluída do povo brasileiro,
participaram do cerimonial de posse de um líder nacional. Há mais de 200
anos, em 12 de outubro de 1822, o país aclamou o seu primeiro líder, o
imperador d. Pedro I, até então príncipe regente do Reino do Brasil. O
ato ocorreu no Rio de Janeiro, na atual praça da República, então
conhecida como Campo de Santana, que, na época, foi rebatizada como
Campo da Aclamação. Ali, em um pavilhão montado inicialmente para as
festividades da aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e
Algarves, o seu filho, D. Pedro, foi aclamado primeiro governante do
Brasil independente “pela vontade dos povos”.
Após
o Grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, o então presidente do
Senado da Câmara do Rio de Janeiro, Clemente Pereira, despachou para as
câmaras de outras cidades um manifesto afirmando que o Rio de Janeiro
desejava aclamar D. Pedro como imperador do Brasil. A maioria concordou,
e assim o povo, ou, no caso, a elite econômica da época, por meio de
seus representantes eleitos, decidiu colocar o então príncipe no trono.
Para
a data da cerimônia, realizada diante de toda a capital do Brasil, foi
escolhido o aniversário de D. Pedro, 12 de outubro. Diferentemente do
clima de Brasília na posse do presidente Lula, quente e ensolarado, no
dia da aclamação de D. Pedro, chovia no Rio de Janeiro, e a festa, ao
contrário da gravura feita pelo pintor francês Jean Baptiste Debret,
ocorreu debaixo d’água.
D.
Pedro saiu do Paço da Quinta da Boa Vista para o Campo de Santana num
cortejo formado por sua guarda de honra, composta por oficiais
fluminenses e paulistas, que futuramente daria origem aos Dragões da
Independência, presentes nas posses dos presidentes da República até
hoje. Adiante da carruagem que conduzia o imperador d. Pedro, a
imperatriz d. Leopoldina e a princesa imperial Dona Maria da Glória,
seguiam três moços de estribeira: um indígena, um mulato e outro negro. A
presença dessas três raças foi, provavelmente, uma ideia do ministro
José Bonifácio, um defensor do fim da escravidão e da integração entre
os povos do Brasil.
Além
da ausência da chuva, na gravura de Debret há um branqueamento
europeizante do evento. D. Pedro e a corte aparecem no alto de uma
varanda saudando a multidão amorfa. Nas palavras de Otávio Tarquínio de
Souza, D. Pedro era aclamado pelo “Brasil inteiro, no colorido de suas
raças, e sub-raças, os brancos ou aparentemente brancos, das classes
dirigentes, e os mulatos, negros e índios, em maior número, da gente
humilde cujo status pouco se alteraria, a despeito da Independência e do
Império Constitucional”.
A
representação dessas raças na cerimônia de 1822 era uma idealização
romântica desses povos, que na prática eram dominados e escravizados
pelos brancos. Anos antes da Aclamação de D. Pedro, ainda durante o
governo de D. João no Brasil, foi declarada a chamada “Guerra Justa”
contra os indígenas. Ao menos três Cartas Régias emitidas por D. João
entre 1808 e 1809 autorizavam o ataque contra diversas etnias indígenas
que “recusavam a civilização”. A posse, a integração e a segurança do
território eram necessárias, aos olhos dos dominadores, para transformar
o Brasil na sede do Império Ultramarino Português. Quanto ao negro e ao
mulato, também presentes na cerimônia, somente 66 anos depois é que a
escravidão seria totalmente extinta no país.
O
Brasil nasceu como uma colônia de exploração, domínio onde a metrópole
buscou a sua riqueza durante mais de 300 anos. Ao longo desse período,
diversos povos serviram de mão de obra para essa empreitada por meio da
escravização de seres humanos, desde os primeiros anos da colonização,
no século XVI, e ao longo de décadas após a Independência. Embora
extinta em 1888, um ano antes do fim do período monárquico, os reflexos
da escravidão perduram até hoje.
É
muito louvável ver essas populações, por tanto tempo excluídas,
participarem da festa da democracia, em meio a um cerimonial que deu a
elas papel ativo no processo de transferência de poder. Resta agora
exercer a vigilância democrática sobre o novo governo, para que a
promessa delineada nesse simbolismo tão forte não seja analisada daqui a
200 anos como algo meramente ornamental, e sim como o ponto de partida
para uma política pública que vise ao alcance da cidadania plena por
todos os segmentos da nação brasileira.
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