BLOG ORLANDO TAMBOSI
A
força do recomeço eterno da contagem dos dias é tão forte que, mesmo
quem não faz rituais de ano novo, sente a força dessa data. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
O Ano-Novo tem algo de sagrado. As pessoas sentem que recebem uma nova chance para refazer a vida
de uma forma melhor. São idiotas por isso? Não. O calendário —no nosso
caso, uma mistura de cristianismo com romano pagão— carrega em si o
nascimento de Jesus Cristo, um deus para os cristãos.
É
o caráter da contagem crescente dos anos, misturada com meses e dias
que se repetem, que produz a sensação de algo sagrado, não o fato de ser
uma contagem cristã. Mesmo descrentes podem sentir esse efeito de renovação do Ano-Novo. A cada Ano-Novo, se volta ao começo da contagem dos meses, e aí está o efeito de renovação. Volta-se ao início de novo.
O
que é o sagrado? Uma das definições mais operacionais é a do
historiador de religiões comparadas romeno Mircea Eliade (1907-1986).
O
estudo das religiões comparadas se caracteriza por identificar
semelhanças entre as diversas religiões históricas, apontando estruturas
que se repetem.
Uma
dessas estruturas é o que ele chama de dialética do sagrado e profano
—"O Sagrado e o Profano", da editora Martins Fontes. É dessa definição
que falamos hoje. Ao somar anos, o calendário aponta para um avanço
linear. Na Antiguidade cristã e na Idade Média, para quem sabia em que
ano estava, o avanço do calendário implicava a ideia da chegada do fim
do mundo e o julgamento divino —ideia comum em muitas religiões: fim de
mundo, julgamento dos deuses.
Mas
o caráter repetitivo, cíclico, é que dá a sensação de recomeço,
renascimento. Muitas religiões associaram ao longo do tempo esse caráter
cíclico de uma vida que se repete e se renova às estações do ano que se
repetem infinitamente.
Por
isso, não são idiotas as pessoas que se sentem renovadas no ano novo,
apesar de que 1º de janeiro é uma quarta ou quinta de uma mera semana.
Qual é a diferença, afinal?
A
diferença é o caráter sagrado que o ciclo estabelece. Sagrado é poder
para Eliade, poder criador, transformador, aniquilador e poder de
permanência. Profano é o que está à mercê do poder sagrado. Você sai com
um santinho ou com uma pedra de cristal na bolsa porque um representa
uma pessoa supostamente poderosa porque mais perto de Deus, e a outra,
uma pedra que tem o poder de durar muito tempo, ao contrário de você,
frágil e que dura pouco.
O
caráter cíclico do recomeço do ano novo remete ao poder do tempo
sagrado que permanece no horizonte se repetindo ao longo do tempo
cósmico —o universo nos parece sagrado porque é imenso e misterioso.
Ainda que seja mera convenção, ela é acompanhada de festas, rituais,
roupas especiais, altera a contagem dos dias nos negócios, implica
prazos jurídicos, enfim, tem uma eficácia simbólica. O homem é um animal
simbólico, já dizia o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945).
O
tempo sagrado altera a percepção de qualquer dia da semana para quem
acredita. Natal, Ano-Novo, Dia do Perdão judaico, Ramadã islâmico, para
dar alguns exemplos. Datas que se repetem e dão a chance às pessoas de
pensarem a si mesmas num ciclo maior da vida e agir sobre ele.
Por
isso, muitas vezes, essas datas implicam a suspensão das atividades
cotidianas comuns —profanas, banais— para que as pessoas se dediquem ao
efeito simbólico de um tempo que transcende o cotidiano. O fato de tudo
ser uma invenção humana, do ponto de visto histórico, social, filosófico
ou psicológico, só reforça a percepção da função poderosa da criação de
calendários sagrados.
Claro
que para quem crê, há algo de sobre-humano nisso tudo. Você pode ser
uma pessoa que não crê em religião histórica nenhuma e sentir que o
universo "muda" com o Ano-Novo e abre uma nova era de energias para você
recomeçar num tempo eterno como o próprio universo. Quando essas datas
são esquecidas, elas perdem a eficácia, como no caso de judeus
assimilados que não interrompem seu dia a dia para as datas sagradas do
judaísmo.
A
força do recomeço eterno da contagem dos dias é tão forte que mesmo
quem não faz rituais de ano novo, sente a força dessa data. Neste
momento, nos unimos aos nossos ancestrais pré-históricos, contemplando
algo maior do que nós.
Postado há 1 hour ago por Orlando Tambosi
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