De 1942 a 1945 Hollywood produziu cerca de 500 filmes de guerra ou relacionados. Casablanca foi dos primeiros com a ideia de cruzada internacional até no leque de nacionalidades dos principais atores. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Casablanca
estreou no New York’s Warner Hollywood Theater a 26 de Novembro de
1942, Dia da Acção de Graças, poucas semanas depois do desembarque dos
Aliados na África do Norte francesa. O filme era de Michael Curtiz, um
realizador nascido em Budapeste, ainda no Império dos Habsburgo, e com
uma longa carreira europeia. Curtiz fora convidado pela Warner Brothers
para Hollywood em 1926, depois de já ter feito dezenas de filmes na
Europa, entre eles épicos bíblicos, como Sodoma e Gomorra. Em Hollywood,
Curtiz dirigiria mais de 100 filmes, incluindo uma série de sucessos,
como The Adventures of Robin Hood, com Errol Flynn e Olivia de
Havilland, e White Christmas, com Bing Crosby, Danny Kaye e Rosemary
Clooney e música de Irving Berlin.
Casablanca,
cujo guião era adaptado de uma peça de teatro, Everybody Comes to
Rick’s, reunia também um elenco de luxo – Humphrey Bogart, Ingrid
Bergman, Paul Henreid, Claude Rains e Conrad Veidt – e viria a ser, por
várias razões, um “filme de culto”, com três Óscares e um lugar cativo
no topo das listas dos “melhores filmes da História do cinema”.
A Idade da Propaganda
Com
uma intriga sentimental e passional numa conjuntura de guerra e de
ocupação, o filme era, claramente, um filme político. O cinema
tornara-se, desde os anos 20, uma importante arma de propaganda
política. Cmunistas e fascistas sabiam que o cinema, com a força da
imagem, era um instrumento poderosíssimo para conquistar e doutrinar as
massas. Logo em 1925, Sergei Eisenstein, com 27 anos, estreava o
extraordinário Couraçado Potemkine, inspirado numa revolta de
marinheiros da Marinha Imperial russa, em 1905; em 1927, também ainda no
“mudo”, Pudovkin realizava O Fim de São Petersburgo, uma história
passada na tomada de poder pelos bolcheviques. E na década de trinta, já
no sonoro e com Estaline no poder, Eisenstein, Dziga Vertov, Pudovkin e
outros, cobriam a História da Rússia até à revolução de 1917 e ao culto
da personalidade de Estaline. De Eisenstein ficaram, memoráveis, além
de Outubro (1928), Alexandre Nevsky (1938) e Ivan, O
Terrível(1944-1946). Se a primeira parte de Ivan o Terrível valeu a
Eisenstein o Prémio Estaline em 1945, a segunda, acabada em 1946, que
mostra Ivan como um autocrata louco, foi proibida pelo Czar Vermelho e
só seria exibida cinco anos depois da morte de Estaline e 10 anos depois
da morte de Eisenstein em Moscovo, abandonado por todos.
O
fascismo mostrou idêntica preocupação com a Sétima Arte: logo em 1924,
Mussolini lançou o Istituto Luce, que se especializou nos noticiários de
actualidades, obrigatoriamente exibidos nas sessões do cinema; em 1932,
foi criado o Festival de Veneza e em 1937 a Cinecittà. O fascismo
prosseguiu uma política de apoio ao cinema italiano, mantendo as
produtoras em mãos privadas, mas concedendo-lhes generosos meios
financeiros.
Já
em pleno “sonoro”, houve filmes de exaltação ideológica, como Vecchia
Guardia, de Alessandro Blasetti (que trata do esquadrismo e da Marcha
sobre Roma), ou 1860, também de Blasetti, que induz a convergência
ideológica do fascismo com o Risorgimento e a unidade da Itália. Por sua
vez, os filmes históricos, como a superprodução Scipione l’Africano, de
Carmine Gallone (1937), faziam apelo ao império romano para glorificar a
aventura africana do regime fascista.
Houve
também uma vasta produção de comédias com grandes actores, como Totó e
Vittorio de Sica, dirigidos por Mario Camerini, o género de comédia de
costumes que, à semelhança das produções portuguesas da época, acabava
também por servir a imagem do poder. E entre 1937 e 1941 foi o tempo dos
chamados Telefoni Bianchi, filmes cor-de-rosa, com enredos românticos
em ambientes de luxo (onde os telefones eram invariavelmente brancos) e
finais felizes.
Hitler
e o nacional-socialismo apostaram também no cinema como instrumento de
propaganda, ficando famosos os filmes de Leni Riefenstahl sobre grandes
eventos nazis, como Der Sieg des Glaubens (sobre o Congresso de
Nuremberga, de 1933) ou Olympia (sobre as Olimpíadas de 1936).
A
produção cinematográfica era posta ao serviço do Partido e da Alemanha
em guerra; mas embora a indústria do cinema estivesse sob direcção
governamental, através da UFA (Universum-Film Aktiengesellschaft),
Goebbels, ministro da Propaganda, procurava não bombardear a população
com excessos de ideologia e de guerra. Assim, a par de filmes
anti-semitas, como Die Rothschilds e Jud Süss, ou de glorificação de
figuras históricas, como Frederico II e Bismarck, entre 1933 e 1945 a
Alemanha produziu mais de mil fitas, a maioria comédias ligeiras ou
mesmo comédias musicais, que procuravam transmitir uma certa
“normalidade” em tempos bastante extraordinários.
A Guerra e as guerras de Hollywood
As
democracias – e a democracia americana – também não hesitaram em seguir
um caminho paralelo: a partir de 7 de Dezembro de 1941, depois do
ataque japonês a Pearl Harbour, a América mobilizou o cinema para o
esforço de guerra, numa linha de estado de excepção, criando um
organismo, o Office of War Information, para coordenar os meios
culturais de propaganda.
Hollywood,
“a fábrica dos sonhos”, foi arregimentada: o inimigo número 1 era o
fascismo, mas o fascismo alemão, até porque Mussolini era bastante
popular entre os italo-americanos.
Casablanca
foi alvo de polémica entre os especialistas, com críticas à ambiguidade
de algumas personagens, nomeadamente a do herói, Rick (Humphrey
Bogart), um cínico convertido à renúncia e às causas do bem comum. No
entanto, como propaganda de guerra, e apesar da ambiguidade – ou por
causa dela –, Casablanca cumpria bem a missão de explicar as razões da
intervenção a um povo favorável à não-intervenção (segundo uma sondagem
do Gallup, de 1942, 96% dos americanos eram favoráveis à neutralidade).
No
âmbito dessa mesma missão, e muito “à americana”, Hollywood vai
produzir, entre 1942 e 1945, cerca de 500 fitas de guerra ou
relacionadas com a guerra. Casablanca foi das primeiras e, como notava
um crítico, a ideia de cruzada internacional começava logo por aparecer
na nacionalidade dos principais actores do elenco: Bogart (Rick) era
americano, Bergman (Ilsa), sueca; Paul Henreid (Lazlo), austríaco;
Conrad Veidt (major Strasser), alemão; Claude Rains (capitão Renault),
inglês.
A
moral, prescrita pelo Office of War Information e recomendada pelo
produtor Hall Wallis, da Warner Brothers, para o guião de Casablanca,
era a de que “os desejos pessoais deviam ser subordinados à tarefa de
derrotar o fascismo”. Os guionistas, os irmãos gémeos Julius e Philip
Epstein e Howard Koch, outro judeu nova-iorquino, compuseram a narrativa
da paixão de Ilsa e Rick tornada impossível pela guerra e pelo dever,
num ambiente de film noir, mais europeu que americano, reforçado pelo
protagonismo de Bogart.
Koch
ia ser, no ano seguinte, o argumentista de um outro filme político de
guerra, também dirigido por Curtiz. Com um elenco bastante mais modesto
do que o de Casablanca, Mission to Moscow dava uma imagem paradisíaca da
URSS de Estaline. O comunismo despertava grande hostilidade na América
e a ideia era torná-lo aceitável. Koch era comunista e teria depois
problemas no tempo de McCarthy.
Casablanca
acabou por ser um belo filme e por cumprir a sua função
propagandística. Rick, encarnado por um Bogart que em outras fitas do
film noir americano aparecia como gangster, detective privado ou
marginal, percorria ali todo um caminho de redenção. De cínico e
egocêntrico dono de um “gin joint” neutral ou mesmo colaboracionista a
encapotado resistente anti-nazi com um coração de oiro (que permitia,
com aceno de cabeça, que a Marselhesa de Lazlo se sobrepusesse ao Die
Wacht am Rhein dos alemães no seu estabelecimento), o ambíguo herói iria
revelar-se, no final, um devotado altruísta que sacrificava a sua
paixão para salvar o rival, em nome da liberdade.
Para
o americano médio, talvez céptico quanto ao destino de uma Europa que
os seus antepassados tinham abandonado e que ainda era, na tradição dos
Quakers, “o Reino do Mal”, a conversão de Rick-Bogart, ou de
Bogart-Rick, à causa da liberdade, sacrificando a sua velha paixão, e o
abandono simbólico de Vichy do igualmente cínico e simpático capitão
Renault-Rains, no Aeroporto, antes do avião para Lisboa, poderiam bem
simbolizar o abandono do isolacionismo e o arranque da América para a
salvação do mundo.
Mas
com política a mais ou a menos, nunca é pela propaganda que as coisas
ficam; o que, com o passar do tempo, permanece agarrado à nossa memória
são coisas como o As Time Goes By, tocado e cantado repetidamente por um
relutante Sam-Arthur (Dooley) Wilson, a pedido ora de uma nostálgica
Ilsa-Bergman ora de um masoquista Rick-Bogart.
Tudo coisas que devem estar prestes a ser canceladas pelas novas e mais descarnadas e descaradas propagandas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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