Inteligência e memória de gênio são traços com grande vocação a ferramenta de alto valor de mercado no capitalismo. Luiz Felipe Pondé via FSP:
O
conceito de tendência de comportamento não pode ser confundido com moda
de comportamento. Esta, quando alçada à condição de tendência —conceito
de vocação sociológica que transcende a alma mesquinha do marketing—,
confunde fetiches de riquinhos —como salvar crianças na Nigéria num
sabático ou pedir demissão de empregos porque não encontram
"propósitos"— com movimentos sociais não feitos para consumo imediato de
nichos afluentes, apesar de movimentar o mercado de bens e gestos.
Toda
tendência de comportamento tem vocação a se tornar commodity. Uma
tendência atual que merece a nossa atenção é a do autismo como moda de
comportamento hype.
"O autismo tá bombando!"
Ouvi essa frase outro dia de um profissional na área. Como o que ontem
era um diagnóstico psicopatológico se transformou numa tendência de
estilo de vida hype? Atenção para o componente altamente irônico da
seguinte afirmação: agora todo mundo quer ter um filho autista.
Talvez
hoje valha mais do que um filho trans no mercado das vanguardas de
comportamento. Como um sofrimento humano gigantesco pode se transformar
numa commodity hype de comportamento? A série coreana "Uma Advogada
Extraordinária", da Netflix, ilustra esse fenômeno. Sinopse básica:
brilhante advogada autista, com inteligência muito acima da média e
capacidade de memória monstruosa, sofre com dificuldades de
relacionamento.
A sinopse acima ilustra claramente a fetichização do sofrimento de uma psicopatologia.
Inteligência e memória de gênio, traços com grande vocação a ferramenta
de alto valor de mercado no capitalismo contemporâneo focado em
"conhecimento" —com aspas sim—, apontam para a tendência de fazer do
autismo um "plus" com qualidades cognitivas invejáveis. O filme "O
Contador", com Ben Affleck, já fazia de um autista um assassino profissional, e contador, como ninguém.
Ali
já aparecia a grande qualidade autista para o mercado de bens e gestos:
ser focado. Nossa advogada brilhante sofre com dificuldades de
relacionamento. Alguém poderia dizer, com propriedade, quem hoje não
sofre com dificuldade de relacionamento? Tal tipo de dificuldade pode
ser o preço a pagar para você ser um gênio, não? Além do fato que
relacionamentos somam menos ao modelo de sucesso no século 21 do que
inteligência e memória somam ao mercado de trabalho.
A
suspeita de que altas qualidades cognitivas podem caminhar passo a
passo com dificuldades afetivas no mundo já existia com relação à
melancolia. Do ponto de vista do melancólico, só pessoas superficiais
seriam alegres. A questão é que a melancolia caiu de moda porque ela não
oferece qualidades cognitivas que agregam valor ao "capitalismo de
conhecimento"—com aspas sim, porque a expressão é miserável e não deve
ser confundida com valor do conhecimento real —que marca o século 21.
O
novo autista é um comportamento filho da diversidade psíquica, não
vítima de um drama ambiental familiar gravíssimo. O sofrimento dos
familiares, claro, tende a abraçar o autismo hype como forma de
investimento na autoestima do grupo.
Esse
salto qualitativo anima o mercado da saúde mental de modo promissor.
Num evento de profissionais de saúde mental recente no Brasil, uma
psicanalista, seguindo a teoria de D.W. Winnicott (1896-1971), segundo a
qual podemos entender o autismo como consequência do incômodo materno
radical com a criança indesejada, fazendo do ambiente afetivamente
hostil um espaço do qual a criança deve se isolar de modo radical —o
conhecido isolamento autista—, quase foi apedrejada como uma herege
maldita.
Qual
o pecado dessa teoria? O pecado está no fato de ela apontar para o
ambiente destrutivo —inclusive sendo a mãe parte essencial dessa
destrutividade— como causa essencial do autismo. Isso é imperdoável para
uma sociedade que elegeu o otimismo como virtude cívica.
O
autismo deve ser cada vez mais uma personalidade positiva que oferece
um bem fundamental para o mundo do trabalho: ser focado. O autista real, que você tem em casa, deve ser trocado pela advogada extraordinária.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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