A antropologia de Scruton (1944-2020) está escorada na ideia de que há na natureza leis que são maiores do que o indivíduo e a que este se deve sujeitar, até para se cumprir como indivíduo. Carlos Maria Bobone para o Observador:
É difícil perceber a importância de Roger Scruton (que morreu em 12 de janeiro, aos 75 anos)
sem ter uma certa noção do pensamento conservador inglês. Ora, não só
porque a Magna Carta dotou a Grã-Bretanha de um sistema com instituições
fundamentalmente diferentes das instituições europeias tradicionais,
nem apenas porque o rompimento com a Igreja de Roma é bastante precoce
em relação aos países do Sul da Europa, o conservador inglês procura
conservar coisas bastante diferentes do seu congénere europeu.
Se
a defesa da democracia já seria estranha a qualquer De Maistre, Donoso
Cortés ou Schmitt, a importância do ceticismo no pensamento inglês é
praticamente impensável na tradição europeia. Ora, este ceticismo é,
desde Gibbon, cuja influência no pensamento conservador é frequentemente
subestimada, um aspeto fundamental do conservadorismo inglês. O
conservadorismo inglês não é apenas não confessional; é profundamente
cético, à maneira clássica, por não nos encontrar capazes de destrinçar
um sentido da História – e daí rejeita a ideia de haver na política um
desígnio ou um caminho em direção a qualquer tipo de sociedade – por não
acreditar na possibilidade de corrigir a natureza humana ou, até, na
possibilidade de encontrar verdades políticas. Todo o vocabulário
conservador está, em Inglaterra, dominado por este ceticismo. Oakeshott
fala sempre da “disposição” conservadora, como se a inclinação política
fosse uma questão de afeto, algo que está dependente do nosso feitio e
não da falível, abstrata e simplista razão; mesmo as teses de Burke são
interpretadas à luz destas ideias: do seu pensamento sobre a revolução
destaca-se a ideia de prudência, a descrença na capacidade de o homem
prever os efeitos das suas ações e a ideia de que as liberdades não
podem ser fixadas como postulados universais – são questões concretas,
decididas a cada momento.
O
conservadorismo inglês não conserva por acreditar propriamente no seu
mundo; conserva por desconfiança, por não acreditar na capacidade do
Homem para prever todos os efeitos das suas acções públicas e das suas
leis. O conservadorismo – e isso Oakeshott percebeu bem – nem é
propriamente uma doutrina política: não só porque a sua herança cética o
torna avesso à ideia de um sistema e de um mundo ordenado e
reconhecível como tal, mas até porque desconfia da própria ideia de
política. A não-intervenção estatal, a defesa das comunidades civis e
das leis orgânicas, tudo isto revela uma descrença em relação ao sentido
mais tradicional da política como uma relação de poder entre Estado e
cidadãos ou súbditos e soberanos. O conservadorismo inglês acredita na
sociedade, mas não na política. Acredita nas leis geradas por uma
tradição, acredita na “democracia dos mortos”, mas é estranho à ideia de
valores universais, aqueles que, na linguagem do tradicionalismo
europeu, permitem “distinguir uma tradição de um mau hábito” e que são o
objeto habitual da política.
Roger
Scruton é, em muitos aspetos, um herdeiro natural desta tradição
inglesa. A sua Salisbury Review tem este nome em homenagem ao terceiro
marquês de Salisbury, personagem que, segundo ele, teve um governo tão
substancialmente conservador que pouco sabemos sobre ele, é também um
feroz defensor das leis tiradas dos hábitos espontâneos das comunidades e
das liberdades individuais.
Ao
mesmo tempo, é formado em Cambridge, na escola filosófica de Russell e
Wittgenstein que, se não o apaixonou pela filosofia analítica, pelo
menos deu-lhe um certo sentido de verdade universal e o afastou do
descrédito da razão tão comum no pensamento conservador. Scruton é
herdeiro de um certo iluminismo, do iluminismo que acredita na lei antes
de acreditar na vontade; e acredita na razão antes de acreditar no
interesse individual. E é a sua defesa da lei e da razão que,
curiosamente, o aproximará mais do que qualquer outro pensador inglês da
tradição europeia. Contra as ideias de campo epistemológico e da crença
na ciência como perpetuação de discursos de poder, vindas de Foucault,
Scruton é um defensor de certas verdades universais. Ora, é nesse
sentido que Scruton defende as leis espontâneas. Para Scruton, não há
divisão entre leis de tradição e leis extraídas de princípios: o viver
das comunidades expressa sempre princípios a que a razão, enquanto
mecanismo interpretativo, pode não chegar, mas que não deixam por isso
de ser verdades. Não são verdades irracionais, são apenas verdades a que
a razão ainda não chegou.
Estas
leis espontâneas, no entanto, só são possíveis enquanto a sociedade e o
Homem forem entendidos de uma certa forma. Não é possível acreditar no
valor da sociedade se esta é destruída em nome da omnipotência do
indivíduo. A antropologia de Scruton está escorada na ideia de que há na
natureza leis que são maiores do que o indivíduo e a que este se deve
sujeitar, até para se cumprir como indivíduo. O Homem pode de facto
afastar-se da sua natureza e há uma série de aspetos, desde a vida no
campo à relação com os outros, que nos reaproximam de nós próprios. O
mundo, para Scruton, tem uma ordem, a que também nós estamos sujeitos.
Há, de facto, leis universais, mas não aquelas que a nossa razão postula
como uma lógica inabalável: as leis universais são aquelas a que o
Homem obedece desde o princípio dos tempos e a que cabe à nossa razão
encontrar o sentido. Deve ser a razão sujeita à lei e não o contrário.
Não é por acaso que Scruton foi dos primeiros conservadores a escrever
sobre ecologia e a defender a importância do pensamento ecológico. Não
se trata apenas de uma questão económica, em que as externalidades
negativas são pagas, não por quem as produz, mas por quem sofre com
elas; para Scruton, a Natureza contem uma verdade sobre o Homem que este
perde quando se afasta dela. A ideia de omnipotência humana, até a
ideia de que é possível viver impolutamente, sem matar, destruir, como
se a sobrevivência fosse garantida, é uma ideia que a Natureza se
encarrega de dissipar. Há, na civilização, um mal-estar que vem da
eliminação de um conjunto de rituais e de trabalhos que deveriam ser
próprios do Homem.
Nas
suas memórias, Gentle Regrets, Scruton, numa discreta passagem de
psicanálise Jungiana, divide a sua personalidade em duas personalidades
diferentes. Explica que em pequeno era tratado pelo seu segundo nome,
Vernon, e que, a propósito de uma rixa de que saiu vitorioso, passou a
exigir que o tratassem por Roger. Destes dois nomes sairiam duas
personalidades: uma introspetiva e literária – Vernon – outra combativa e
aguerrida – Roger. De facto, é impossível pensar em Roger Scruton sem
ter em conta o casamento entre estas duas facetas. Roger nunca decidiu
de ser Vernon, e há em todos os seus textos um cuidado literário — de
que o seu método de explicar ideias a partir de acontecimentos
autobiográficos é o melhor exemplo — que faz de Scruton, mais do que um
filósofo, um escritor; mas também há um lado combativo e aguerrido que,
de certa forma, é estranho à fleuma conservadora inglesa. O Scruton das
diatribes contra Hobsbawm e Foucault, o Scruton de Tolos, Impostores e
Incendiários, que não tem medo de entrar na política do dia-a-dia e que
se posiciona em relação ao Brexit é o mesmo que aparece num comovente
episódio de On Beauty and Consolation, a tocar piano e a montar a cavalo
como o mais pacificado dos homens.
Scruton
não foi apenas um cético. Lutou pelos valores ocidentais e pela
integração de imigrantes nas escolas contra a tribalização e a
tolerância permissiva, de certa forma definiu o cânone novecentista dos
inimigos dos valores ocidentais, contestou a historiografia marxista,
fez todos os esforços para desacreditar a ideia da economia capitalista
como um jogo de soma nula, em que toda a riqueza só existe enquanto
explora a pobreza de alguém, mostrou o resultado opressor do relativismo
moral e lógico. No entanto, toda a sua combatividade tem interesse
apenas pelo que, num plano mais profundo, o alimenta. Numa passagem
bonita de Gentle Regrets, Scruton explica que despertou para o
conservadorismo no Maio de 68. Isto porque, enquanto as hostes
universitárias pugnavam pela destruição de tudo, Scruton estava a ler as
memórias de De Gaulle, que começavam com uma alusão discreta a Proust e
uma declaração de amor a uma “certa ideia de França”.
Ora,
o lado positivo do pensamento de Scruton, o seu amor pela cultura
ocidental e pelos que os seus juízos expressam, vai muito para lá do
ceticismo típico do conservadorismo inglês. Scruton ama aquilo que
defende e até os seus textos de estética, aqueles em que, de forma mais
clara, faz uma apologia da tradição ocidental, o demonstram. A estética
de Scruton não é apenas uma diatribe contra o modernismo arquitetónico e
a arte conceptual; a estética de Scruton é apenas a demonstração da
obra da sua política. O que Scruton defende é a civilização, entendendo
como civilização o esforço comum para que cada indivíduo consiga sair de
si e ultrapasse aquilo que já tinha quando nasceu. Belo é aquilo que
comunica e que, de certa forma, traduz um esforço do Homem para se
elevar.
Poucos
autores, como Scruton, casam tão bem a tradição europeia e britânica do
conservadorismo. Se Isaiah Berlin reduz De Maistre a um para-fascista e
a contra-revolução a um contra-iluminismo irracional, se Oakeshott põe a
política na esfera da disposição e Popper, até cientificamente, é acima
de tudo um cético, Scruton constrói uma ponte entre a Inglaterra e a
Europa que poucos conseguem. Tem o gosto pela cultura ocidental que o
dispõe para o conservadorismo, mas também acredita nela, no sentido em
que acredita na sua universalidade. Casa as preocupações económicas e a
defesa das public schools, próprias do conservadorismo Inglês, com a
europeia compreensão de que, sem valores positivos e afirmativos a
própria cultura acaba por se afogar nos mares de tolerância e abertura.
Ler Scruton é ler ao mesmo tempo a mais apaixonada defesa dos séculos e a
mais aguerrida luta pela atualidade. Misturam-se, nos seus textos,
Platão e sindicatos, Thatcher e Napoleão, a sua vida e a natureza
humana, Roger e Vernon.
Numa
das suas reflexões mais introspetivas, a propósito da beleza, Scruton
explicava a necessidade da beleza como a necessidade de encontrar
consolo. O Homem tem esta estranha peculiaridade de nem sempre se sentir
em casa no mundo, e o consolo da beleza traria esta sensação de casa,
de algo que nos é próprio mas a que nem sempre chegamos. Scruton, nas
suas melhores passagens, dá esta sensação de consolo que agora que lhe
desejamos: a sensação de alguém que, finalmente e depois de muito tempo,
reconhece à sua volta o interior de sua casa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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