Alguém se excita com aquilo? Alguém se apaixona ao som daquilo? Algum casal de velhinhos um dia dirá aos netos que “‘Envolver’ é a nossa música”? Paulo Polzonoff via Gazeta do Povo:
Porque
mente vazia é oficina do diabo, lá fui eu ouvir “Envolver”,
megassucesso de Anitta. A canção (termo que uso aqui sem muita
preocupação conceitual) surgiu no meu horizonte musicalmente estreito
pelas redes sociais. Um monte de gente dizendo que é a melhor música da
história do Universo, que Anitta é maior do que Michael Jackson, Prince e
Madonna juntos, que isso e que aquilo.
Mais
do que ouvir, assisti ao clipe da música. E, olha, só não vou me dizer
arrependido porque aquela estrovenga ao menos me rendeu esta coluna. Se
não tivesse sido por “Envolver”, neste momento você provavelmente
estaria lendo um texto sobre Daniel Silveira, Alexandre de Moraes e
Arthur Lira. Ou seja, seria uma coluna sobre pornografias outras que não
as da música explicitamente pornográfica de Anitta.
Sem
querer parecer uma velha professora de geografia, sou obrigado a
perguntar à minha audiência jovem, se é que tenho uma: alguém se excita
sexualmente com aquilo? Alguém vê naquilo qualquer tipo de beleza?
Aliás, os jovens de hoje sabem o que é beleza ou ao menos sabem que
beleza se escreve com “z” e não com “s”? Alguém se apaixona ao som de
"Envolver"? Algum casal de velhinhos um dia dirá aos netes que
"'Envolver' é a nossa música!"? (Calma, boomer!).
Vontades
Mas
não chego ao ponto de dizer que a audição e análise cuidadosas de
“Envolver” tenha sido uma perda de tempo absoluta. Afinal, a música
despertou em mim algumas vontades – embora bem distantes das pretendidas
pela batida entediante e pela combinação absolutamente pornográfica
entre letra e coreografia. A primeira vontade foi a de citar Bill
Bryson. E é justamente isso o que farei agora.
Agora:
“Mencionei minhas observações de que o mundo parece estar cheio de
imbecis. Eles me explicaram que isso é apenas um sinal da idade. Quanto
mais velho você fica, mais parece que o mundo pertence aos outros”. O
trecho está num livro recente de Bill Bryson. Mas a música da Anitta não
despertou em mim vontade o suficiente de ir lá na estante para pegar o
título. Tá, tá, eu vou. Voltei. O livro é o “The Road to Little
Dribbling”, ainda sem tradução no Brasil. Satisfeitos?
Esse
trecho me vem à mente sempre que escrevo sobre o conflito de gerações.
Para mim, é uma forma bem-humorada de fazer a autocrítica e reconhecer a
rabugice de quem vê nos jovens sempre um sinal de que este mundo vai de
mal a pior. E vai mesmo.
Guardiã da cultura
Outra
vontade que a música despertou em mim foi a de falar do famoso &
infame grupo É O Tchan, sucesso absoluto nas rádios e TVs dos anos 1990.
Não vou dizer que Cumpadi Washington & Cia tenham sido os pais da
pornografia musical semiexplícita daquele tempo. Nessa época, Madonna já
tinha lançado até filme semipornô. A diferença é que É O Tchan apelava
às crianças.
Naquele
tempo eu era um adolescente ouvinte do rock depressivo do Nirvana. Via
aquelas crianças rebolando, balançava a cabeça, talvez fizesse até “tsc,
tsc, tsc” – e saía pensando que se tratava de um fenômeno restrito e
sem maiores consequências. Naquela época eu acreditava na existência de
uma elite guardiã daquela cultura que os mais cultos escrevem com “k”.
Mal
sabia eu que, trinta anos mais tarde, seria razoavelmente aceitável ver
uma senhora de glúteos avantajados se esfregando num senhor de traços
igualmente avantajados, tudo ao som de uma batidinha mais chata do que
alarme de carro que dispara às 3h da manhã, e cantando uma letra que
reduz o sexo a uma necessidade fisiológica como outra qualquer. E que eu
estaria aqui escrevendo sobre essa bagaça.
Até as preguiçosas águas-vivas
Por
fim, só me cabe agradecer à grande compositora, cantora, dançarina,
intérprete e influenciadora política Anitta por me dar a oportunidade de
falar de Cole Porter. Não é todo dia que isso acontece, não é mesmo?
(Pigarreio, ajeito a gravata borboleta e, todo feliz, abro um
parágrafo).
Cole
Porter compôs uma das músicas mais discretamente pornográficas de todos
os tempos: “Let’s Do It”. A música é um clássico absoluto do
cancioneiro norte-americano e cada um tem sua versão preferida. Eu, que
estou bem longe de ser aquela pessoa que conhece uma gravação raríssima
feita clandestinamente num bar de beira de estrada no interior do
Wyoming, gosto da versão de Ella Fitzgerald contida em “Ella Fitzgerald
Sings the Cole Porter Song Book”, de 1956.
A
letra é cheia de deliciosíssimas insinuações que hoje soam até
infantis. Passarinhos fazem, abelhas fazem. Até moscas educadas fazem. O
“fazem” qualquer um sabe a que se refere, mas um malicioso Cole Porter
disfarça tudo com “vamos nos apaixonar”. Na versão de Ella Fitzgerald, a
letra inteligente, cheia de piscadelas para o ouvinte, como no
intraduzível verso trocadilhesco “Lithuanians and Letts do it”, é
acompanhada por uma melodia também cheia de insinuações. Com direito a
uma bateria que, sem exagero, minto, com exagero, com muito exagero
mesmo, me leva aos píncaros do prazer musical.
E
aqui eu até encerraria o texto com uma observação necessariamente
rabugenta sobre essa geração que busca alguma inspiração carnal em
“Envolver”. Mas não. Prefiro terminar com Cole Porter dando um
improvável conselho a Anitta – conselho que ela não só desprezará como
também dirá que é motivado pela inveja – e seu público que reduz a
experiência amorosa humana às sensações da genitália: “Até mesmo as
preguiçosas águas-vivas fazem. Tome tento, menina”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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