Em uma época em que vários membros da intelligentsia européia estavam encantados com a União Soviética, essa narrativa de que os nazistas eram capitalistas passou a ser uma falácia extremamente conveniente. Mises já esclarecera a questão à época. Chris Calton para o Instituto Mises:
A controvérsia parece nunca ter fim: afinal, qual era a ideologia econômica dos nazistas?
Recentemente,
deparei-me com uma postagem no Twitter até bem espirituosa. A pessoa,
de esquerda, afirmou o seguinte, parafraseando: "Pessoas que dizem 'Os
nazistas eram socialistas; o próprio nome do partido assume isso!' devem
se sentir atordoadas ao lerem 'buffalo wings'[1]."
Hoje,
parece ter virado senso comum dizer que os nazistas eram capitalistas, e
não socialistas, apesar do capcioso nome do seu partido:
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei ou Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães. Traga o assunto à baila e a reação
sempre será a mesma: os intelectuais arregalarão os olhos e dirão que
qualquer pessoa com formação universitária tem a obrigação de saber que
os nazistas eram capitalistas; se não no nome, ao menos em princípio.
Obviamente,
tal alegação não faz nenhum sentido, pois não sobrevive ao mais básico
teste de lógica, como será mostrado mais abaixo. No entanto, o primeiro
mistério a ser desvendado é: de onde surgiu este mito de que os nazistas
eram capitalistas?
Ludwig von Mises, com efeito, já havia respondido a esta pergunta em 1951 em seu ensaio "Planned Chaos".
Durante
o século XIX, quando o socialismo estava começando a ficar em voga na
Europa, não havia nenhuma distinção entre "socialismo" e "comunismo".
Sim, havia formas distintas de socialismo, mas estas não eram
diferenciadas pelos termos "socialismo" e "comunismo". Cada intelectual
possuía a sua preferência, mas os termos "socialismo" e "comunismo" eram
utilizados de maneira intercambiável.
Sobre isso, Mises escreveu: "Em 1875, em seu Crítica ao Programa de Gotha,
do Partido Social-Democrata Alemão, Marx fez uma distinção entre a fase
precoce e a fase posterior da sociedade comunista. Mas ele não reservou
o nome "comunismo" à fase posterior, e não rotulou de "socialismo" a
fase precoce, para diferenciá-la do comunismo".
Segundo
Marx e sua teoria sobre a história, o socialismo era inevitável. De
acordo com sua análise determinista, todos os países do mundo estavam
destinados a seguir o mesmo caminho: do feudalismo para o capitalismo, e
do capitalismo para o socialismo, quando a história acabaria. Para
Marx, essa progressão era inevitável.
Na Alemanha, os primeiros propagadores do "socialismo de estado" surgiram um pouco antes de Marx. Johann Karl Rodbertus,
assim como Marx, rejeitava várias das teorias socialistas então em
voga, dizendo que eram insustentáveis. Rodbertus foi o primeiro pensador
socialista a defender o controle tanto da produção quanto da
distribuição. Segundo ele, para alcançar isso, os socialistas teriam de
usar o estado. Já o maior propagador dessas idéias foi Ferdinand Lassalle,
cujo proselitismo levou a um rápido crescimento da popularidade daquilo
que Mises viria a rotular de "socialismo de padrão alemão".
O
socialismo alemão, como Mises o definiu, diferia do "socialismo de
padrão russo". O socialismo de padrão alemão, disse Mises, "mantinha, ao
menos aparentemente, a propriedade privada dos meios de produção e
permitia, ao menos nominalmente, o empreendedorismo e as transações de
mercado".
No
entanto, tal arranjo era apenas superficial. Por meio de um abrangente e
complexo sistema de regulações e intervenções econômicas, a função
empreendedorial dos proprietários dos meios de produção era totalmente
controlada pelo estado. Industriais e comerciantes, por exemplo, não
mais tinham a função empreendedorial de tentar antecipar quais seriam as
demandas futuras dos consumidores para então fazer as devidas alocações
de recursos visando à satisfação desta demanda e, consequentemente, ao
lucro. Assim como na União Soviética, essa função de especulação
empreendedorial e alocação de recursos era feita exclusivamente pelo
estado.
Consequentemente,
dado que era o estado quem estava no controle efetivo da alocação de
recursos, o cálculo econômico de preços e custos se tornava impossível.
"Na Alemanha nazista", disse Mises,
Os proprietários dos meios de produção eram chamados de dirigentes comerciais, ou 'Betriebsführer'. O governo dizia a estes supostos empreendedores o que produzir, como produzir, em quais quantidades e a que preços. O governo também determinava de quem eles deveriam comprar, a quais preços e a quem poderiam vender. O governo decretava os salários que deveriam ser pagos para cada trabalhador. E determinava também para quem e sob quais condições o capitalista deveria investir seus fundos.As transações de mercado não eram genuínas; eram apenas um fingimento, uma simulação.E, dado que todos os preços, salários e taxas de juros eram estipulados pelas autoridades, eram preços, salários e juros apenas na aparência. Com efeito, eram termos meramente quantitativos em meio a um ordenamento autoritário que determinava a renda, o consumo e o padrão de vida de cada indivíduo. Era a autoridade, e não os consumidores, quem comandava a produção.
O comitê central de gerenciamento da produção era supremo. Todos os cidadãos se transformaram em meros funcionários públicos. Isso nada mais é do que um arranjo socialista camuflado sob uma aparência externa de capitalismo. Alguns termos que remetiam a uma economia capitalista foram mantidos, mas seu significado era totalmente diferente daquele de uma genuína economia de mercado.
Em
suma: os nazistas praticaram controle de preços, controle de salários e
arregimentaram toda a produção. A propriedade dos meios de produção
continuou em mãos privadas, mas era o governo quem decidia o que deveria
ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem tais
produtos seriam distribuídos, bem como quais preços seriam cobrados,
quais salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria
permitido ao proprietário privado nominal receber.
Desnecessário
ressaltar que determinar preços e salários, e estipular o que deve ser
produzido, como e para quem, representam um claro ataque à propriedade
privada, pois retiram dos produtores as opções que eles teriam no livre
mercado para aplicar seus recursos. Trata-se de uma intervenção estatal
que, na prática, proíbe os proprietários de investirem seus recursos
onde e como bem quiserem.
A propaganda soviética
Mas
os próprios soviéticos também tiveram um papel crucial em criar o mito
de que os nazistas eram capitalistas. Os nazistas nunca tentaram
esconder suas propensões socialistas (afinal, não obstante os twitteiros
sarcásticos, o socialismo estava no nome deles); eles simplesmente
estavam implantando o socialismo seguindo uma estratégia diferente
daquela dos socialistas marxistas.
Os
soviéticos rotularam os nazistas de capitalistas simplesmente porque
eles já haviam começado a redefinir os termos "socialismo" e
"comunismo". Os membros de seu partido, os bolcheviques, agora eram
diferentes dos outros grupos socialistas rivais. Os termos "comunismo" e
"socialismo" ainda eram usados de maneira intercambiável, e a própria
União Soviética era apenas uma abreviação de "União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas". Só que, ao rotularem seu grupo de "Partido
Comunista", o título "Comunista" — que agora significava um membro do
partido de Lênin — se tornou uma maneira de dizer que aquilo era "o
socialismo verdadeiro", por assim dizer.
"Foi
somente em 1928", explicou Mises, "que o programa da Internacional
Comunista ... começou a diferenciar o comunismo do socialismo (e não
somente comunistas de socialistas)." Essa nova doutrina afirmava que, no
arcabouço marxista, havia outro estágio de desenvolvimento entre
capitalismo e comunismo. Esse estágio, obviamente, era o socialismo, e
era neste estágio que se encontrava a União Soviética.
Em
sua teoria original, Marx fez uma distinção entre o comunismo em sua
fase inicial e o comunismo em sua fase final: a verdadeira igualdade só
seria alcançada no estágio final do comunismo, após o estado ter sido
bem-sucedido em seguir todas as políticas recomendadas por Marx e os
seres humanos já terem evoluído para alem de sua "consciência de
classe". Na nova doutrina, "socialismo" simplesmente se referia ao
estágio inicial do comunismo marxista, ao passo que o verdadeiro
comunismo — a fase final do comunismo marxista — só seria alcançada
quando todo o mundo fosse comunista.
Assim,
a União Soviética era meramente socialista, mas os membros do partido
eram comunistas, pois representavam os poucos iluminados que já estavam
trabalhando em prol do objetivo supremo do comunismo.
Por
outro lado, os nazistas ainda alegavam ser socialistas e, com efeito,
agiam de maneira muito semelhante à teoria socialista, com suas
abrangentes e autoritárias intervenções econômicas. Só que, como ainda
havia desigualdade econômica entre os cidadãos da Alemanha nazista
(assim como havia na União Soviética, mas isso não interessava à
narrativa), e como os nazistas mantiveram alguns dos termos técnicos de
uma sociedade capitalista — especificamente, ainda havia a existência
superficial de propriedade privada, ainda que em termos meramente
nominais —, isso já bastava para serem vistos como o exato oposto de
seus congêneres comunistas.
E
então, quando os nazistas invadiram a União Soviética, Josef Stálin e
seus lacaios recorreram à nova narrativa comunista para redefinir o
socialismo nazista — o qual, embora não fosse marxista, se baseava nas
teorias dos socialistas alemães originais que influenciaram diretamente
as idéias de Marx — como "capitalista".
De acordo com essa nova narrativa, os nazistas estavam na etapa suprema do capitalismo, a qual seria a pior de todas.
Em
uma época em que vários membros da intelligentsia européia estavam
encantados com a União Soviética, essa narrativa de que os nazistas eram
capitalistas passou a ser uma falácia extremamente conveniente. Mas
trata-se de uma ideia sem o mais mínimo fundamento em princípios
econômicos. É apenas uma deturpação soviética com base no arcabouço
marxista. Os nazistas, que apregoavam orgulhosamente seu socialismo e
que implantaram políticas socialistas com grande consistência, passaram a
ser chamados de capitalistas pelo simples motivo de que eles não se
encaixavam pristinamente na visão de mundo soviético-marxista.
Esta narrativa segue viva até hoje.
[1] Buffalo wings, ou asas de Búfalo, nada mais são do que asas de frango apimentadas. O nome se deve ao fato de tal prato ter sido inventado na cidade americana de Buffalo, Nova York.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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