O
conceito de família tem passado por transformações profundas nas
últimas décadas, refletindo mudanças sociais, culturais e jurídicas. Uma
das expressões mais importantes desse processo é a filiação
socioafetiva — quando o vínculo entre pais e filhos é reconhecido com
base no afeto, na convivência e na intenção de cuidar, mesmo sem ligação
biológica.
As
publicitárias Andressa e Carine, casal homoafetivo, criam juntas a
filha desde o nascimento. Para elas, a filiação socioafetiva é, antes de
tudo, um ato de amor e cuidado. Andressa conta que se sentiu mãe desde o
primeiro encontro com a filha de sua companheira e, por isso, fez
questão de assumir também, no papel e na lei, todas as responsabilidades
de uma mãe biológica.
Entretanto,
apesar do respaldo crescente da Justiça brasileira, a ideia ainda
encontra resistência em setores mais conservadores da sociedade. Um dos
movimentos que mais vocaliza esse desconforto é o chamado "redpill", que
propaga visões rígidas sobre gênero, masculinidade e família
tradicional, muitas vezes com discursos que confrontam diretamente os
avanços no Direito das Famílias.
Mas o que é filiação socioafetiva?
A
filiação socioafetiva ocorre quando uma pessoa assume, de forma
contínua e voluntária, o papel de pai ou mãe de uma criança ou
adolescente sem ter laço sanguíneo. Esse reconhecimento pode acontecer
judicialmente ou por escritura pública em cartório, com autorização do
Ministério Público nos casos que envolvem menores.
“É
um avanço civilizatório. A Justiça entende que o vínculo de afeto,
cuidado e presença pode ser tão ou mais importante do que a biologia. O
Direito de Família acompanha a vida real — e na vida real, muitas
crianças são criadas por quem não é pai ou mãe biológico, mas está lá
diariamente exercendo esse papel”, afirma o advogado Renê Freitas,
especialista em Direito de Família, com foco no público feminino.
O
Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2017, a possibilidade da
multiparentalidade, permitindo que uma criança tenha, por exemplo, um
pai biológico e um pai socioafetivo registrados simultaneamente em sua
certidão de nascimento.
Segundo
o DataJud, o painel de estatísticas do CNJ (Conselho Nacional de
Justiça), o número de ações de reconhecimento de paternidade ou
maternidade socioafetiva disparou. Em todo o Brasil, houve uma alta de
21% no período de entre 2022 e 2023. Os casos novos que surgiram na
Justiça subiram de 4.320 para 5.256 processos.
Em 2024, ao menos até abril, um novo volume de 1.953 ações já havia ingressado no Judiciário brasileiro para tratar do tema.
Quem ama cuida – e sustenta
Com
o reconhecimento legal da filiação socioafetiva, também surgem deveres
jurídicos. Um dos principais é o pagamento de pensão alimentícia, que
pode ser solicitado pela criança ou adolescente (representada por sua
mãe ou responsável), caso haja o rompimento da convivência com o pai ou
mãe socioafetivo.
Segundo
Renê Freitas, a pensão é uma consequência natural da relação
reconhecida. “A partir do momento em que há o vínculo legal de filiação —
seja ele biológico ou afetivo — os direitos e deveres são os mesmos.
Isso inclui o dever de sustento, cuidado e participação na criação da
criança. A pessoa que se apresenta como pai ou mãe deve estar preparada
também para as obrigações que isso impõe”, explica o advogado.
O
especialista alerta que o Judiciário tem sido rigoroso em garantir esse
direito. “Se um padrasto, por exemplo, registra a enteada como filha,
mesmo sem laço biológico, e depois abandona a convivência, ele ainda
pode ser responsabilizado financeiramente, inclusive com a fixação de
pensão alimentícia”, afirma.
Esse
entendimento tem respaldo no melhor interesse da criança e do
adolescente, princípio que orienta todas as decisões do Direito de
Família no Brasil.
A reação dos ‘Red Pill’
Na
contramão dos avanços jurídicos e sociais, cresce na internet o
movimento ‘red pill’, inspirado em ideologias antifeministas e
masculinistas. Esses grupos promovem discursos que reforçam a autoridade
masculina, deslegitimam a paternidade afetiva e propagam desinformação
sobre temas como pensão, guarda e direitos das mulheres.
Muitos
integrantes do movimento criticam duramente a filiação socioafetiva,
alegando que “qualquer homem pode acabar pagando pensão para um filho
que não é seu”. Esse tipo de narrativa, embora comum nas redes,
desconsidera o contexto legal e ético da situação.
Em
fóruns na internet, é comum ver falas onde esses grupos destilam ódio e
desinformação. Em uma publicação com mais de 500 curtidas e 300
compartilhamentos, um usuário lista o porquê que os homens não devem
ficar com “Msol” (Mães Solteiras). Um dos itens fala sobre o homem ter
“toda a responsabilidade sem nenhuma autoridade”.
“O
discurso red pill é desonesto. Eles ignoram o principal: a decisão de
se tornar pai ou mãe socioafetivo é voluntária. Ninguém é obrigado a
assumir esse papel, mas, uma vez assumido — especialmente com registro
legal —, há sim responsabilidade. E isso protege a criança, que é quem
mais importa nessa equação”, rebate Renê Freitas.
Uma luta por reconhecimento
Casos
como o de Andressa e Carine, mostram a importância da filiação
socioafetiva. Mesmo sem ser a mãe biológica, Andressa conseguiu o
reconhecimento legal da maternidade, garantindo à criança todos os
direitos — e ao casal, segurança jurídica.
Em
outros casos, o reconhecimento do vínculo afetivo é fundamental para
garantir não apenas pensão, mas herança, plano de saúde, inclusão em
dependência legal e o direito à convivência familiar, mesmo em caso de
separação.
“Família
é onde existe amor e responsabilidade. O Direito precisa acompanhar
essa realidade — e proteger quem realmente importa: os filhos e filhas
que precisam de cuidado, e não de ideologias ultrapassadas”, diz
Andressa.
Perspectivas
Para
o especialista, a tendência do Direito é continuar ampliando o
reconhecimento das múltiplas configurações familiares. O Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) já emitiu orientações para que cartórios
realizem o reconhecimento da filiação socioafetiva com menos burocracia,
desde que estejam presentes os requisitos legais.
A
resistência de movimentos como o ‘red pill’ mostra que a disputa por
narrativas sobre o que é ou não família ainda está em curso. No entanto,
o que se consolida nos tribunais e nos lares brasileiros é uma visão
mais humana e plural, baseada no amor, no cuidado e na convivência.
Mais informações: https://www.renefreitas.com.br/
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