O livro “A Lança de Anhangá” (Cachalote, 2024), de Ricardo Kaate Lima, foi lançado no segundo semestre do ano passado
Zemaria Pinto*
Relutei
muito antes de escrever esta nota. Resisto ainda. Mas preciso seguir em
frente. Começo pelo fim: a conclusão expressa no título.
O
livro de contos de Ricardo Kaate Lima, vencedor do Prêmio Literário
Cidade de Manaus, de 2022, traz à literatura feita no Amazonas uma
ramificação do gênero fantástico como ainda não víramos nas melhores
páginas de Erasmo Linhares ou Adrino Aragão.
Na
verdade, se “o fantástico é a suspenção da realidade e o maravilhoso é a
realidade estendida”, como eu disse sobre os anões de Márcia Antonelli,
estamos diante, em A lança de Anhangá,
de um caso extremo de realismo maravilhoso, onde o não-real faz parte
da realidade: uma paradoxal realidade não-real, que assume, muitas
vezes, uma ambientação distópica de pura fantasia – fantasy art. Literatura em estado pleno.
Ricardo
Lima assume o regionalismo que a literatura anêmica do “Sul maravilha” –
lembrando a querida Graúna, criada pelo irmão do Betinho – insiste em
fazer de conta que não existe. Os sete contos do livro trazem narrativas
que contrapõem a gente comum e entidades que extrapolam a mitologia
amazônica, como Anhangá, o demônio do título. Aliás, autores de peso,
como Câmara Cascudo e Nunes Pereira, registraram que a grafia correta é
Anhanga, mas a literatura – a melhor literatura, como Gonçalves Dias e
Machado de Assis – registra Anhangá. Nenhuma dúvida. Mas o Anhangá de
Kaate é menos um demônio que um justiceiro, na melhor tradição das Graphic novels.
Ambientados
numa Amazônia futurista não muito distante, os contos de Kaate Lima
colocam o leitor, de supetão, entre as “guerras lunares de Phobos e
Europa”, ou “em algum lugar entre as Trevas Exteriores e as Terras
Devastadas”. E pra não dizer que não falei das flores, registro sem spoilers a narrativa mais completa do livro, “O prelúdio da escuridão”, uma novela noir,
para ser lida em preto e branco, com todas as nuances de cinza. Sim,
novela, não apenas pela extensão, cerca de cem páginas, mas pela
complexidade da trama e da narrativa.
No
centro dos acontecimentos, passados numa cidade semidestruída chamada
Manaus, assistimos ao confronto entre o agente federal Heitor Navarro e
Anhangá, o senhor das trevas, sugador de almas. O pano de fundo é um
país dominado pelo totalitarismo nazifascista, lembrando a ficção de
George Orwell e a história real das guerras do século 20: o Big Brother,
aqui chamado de Grande Líder e sua milícia de “pacificadores”, mais a
palavra de ordem de Franco antes de acionar o garrote vil, traduzida
literalmente, “Viva la muerte!”.
Os
contatos com a história recente do Brasil são muitos, como o slogan
oficial, sobre a foto do Grande Líder: “O enviado de Deus protege o
Brasil do caos”. Substitua caos por “comunismo” e terá a impressão de um
déjà-vu.
Mas a ação do vigilante justiceiro não passava em branco nas camadas
inferiores, economicamente, da população, que buscava a proteção não do
Grande Líder, mas de uma entidade espiritual em quem pudesse confiar:
– Arrependam-se! O fim está perto! O Anhangá é o Cavaleiro do Apocalipse trazido pelo senhor Jesus!
Os
velhos professores “aposentados” pelo Grande Líder sabiam que Anhangá é
um servo de Yurupari, o Legislador divinizado, que se encontra como
base em todas as religiões e mitos ancestrais. Tempos medonhos pedem
tempos de mudança. Heitor Navarro percebeu isso.
A
literatura de Ricardo Kaate Lima é mais que mero entretenimento: é uma
prospecção profunda e simbólica do que nos espera no breve tempo que
ainda temos pela frente.
*Zemaria Pinto
tem 28 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, contos,
ficção infantojuvenil, didáticos e ensaios sobre literatura. Como
organizador, publicou dois livros para a Academia Amazonense de Letras.
Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas. É
especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos
Literários (2012), pela UFAM. É membro da AAL, onde ocupa a cadeira 27,
de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), inaugurou, em fevereiro de
2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.
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