Quando
era adolescente, meu pai, atento às minhas perigosas tendências
artísticas, me disse: “filha, você sabia que a Lygia Fagundes Telles era
escritora e Procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São
Paulo?”. Apresentou-me o que pareceria o caminho perfeito para uma
menina de classe média que visava à fuga dos perrengues financeiros, sem
abrir mão de uma vida criativa.
Foi
assim que fui parar na faculdade de Direito, onde me sentia um tanto
deslocada. Falo, com frequência, que, no mundo jurídico, demorei a
encontrar a minha turma, o que aconteceu apenas quando ingressei na
Defensoria Pública da União. À medida que comecei a me envolver com as
defensoras e os defensores mais dedicados à defesa de direitos humanos,
deparei-me com um oásis de engajamento e sensibilidade. Que lindo é ver
esses meus colegas trabalhando! Que sorte é poder participar disso.
A
odisseia dos concursos públicos obrigou-me a engavetar o sonho de ser
escritora. Sei que há gente que sabe conciliar uma coisa à outra; eu não
sabia. Guardei-o tão fundo que cheguei a pensar que o havia enterrado. E
o velava toda vez que lia um livro que me arrebatava, acreditando que
minha sina era apreciar a arte do mundo, jamais fazê-la. Até que, ano
passado, aos 39, a necessidade da escrita me veio como uma febre. Caí,
delirante, na cama das palavras desejantes, que me queimavam, que me
moviam, que me faziam contorcer. Minha dor deliciosa me fez parir um
livro e, com ele, uma vida dupla: a servidora pública tem, agora, de
conviver, com a escritora. Uma percorre as agruras do dia a dia, tenta
resolver as demandas de uma população vulnerável, é colocada frente a
frente aos males do mundo; a outra se enreda em um universo onírico,
onde é possível, até mesmo, sofrer bonito.
A
Defensoria mostrou-me que o Brasil é diverso — minha experiência no
Norte do país foi enriquecedora; voltei com um olhar renovado para o
Centro-Oeste, onde vivo — e que é preciso ter ouvidos atentos às
histórias dos assistidos, pois se aprende muito com a dureza (e com a
beleza que teima em resistir). Trata-se de um ofício que não se
desempenha se o espírito não estiver infusionado de esperança. Aqui,
penso haver um ponto de intersecção com a literatura: um coração
desesperançado não derrama no papel.
Ainda
é difícil dizer o que a defensora tem da escritora e a escritora, da
defensora. Elas sabem muito bem quando desempenhar suas funções e,
talvez, tenham o mesmo olhar delicado, de quem enxerga a fragilidade
própria e a do outro — a força própria e a do outro. O que sei é que uma
jamais fica imune à outra. Sou os livros que li, as obras de arte que
apreciei, os filmes aos quais assisti. Sou também as audiências de que
participei, os pleitos de liberdade provisória que formulei, a voz de
quem, um dia, precisou levar um pleito — de fornecimento de medicamento,
de concessão de um benefício previdenciário injustamente indeferido —
ao Judiciário.
O
engraçado é que ambas escrevem. No filme Os sonhadores, o personagem do
Louis Garrel relembra o mais célebre verso de seu pai: toda petição é
um poema, todo poema é uma petição. Poemas e petições podem ser minutas
de desejos.
Em
uma conversa com a Gabrielle Estevans, jornalista e psicanalista,
falei, certa feita, que desconfiava que a formalidade do meu texto —
como fica evidente, ele é pouco coloquial — tinha raiz no Direito. E
mais: quiçá fosse uma estratégia para me proteger. “Proteger do quê?”,
você pode me perguntar, e eu respondo “de mim mesma, de expor minhas
feridas em demasia”. Porque também há muitas dores nas petições e lá eu
tenho uma armadura. Como retirar algo que, às vezes, parece ter se
fundido à pele? Ora, portanto, fico em carne viva, ora meu torso carrega
uma malha de metal.
A vida dupla. De repente, inescapável.
Outras
circunstâncias embalavam minha vida quando uma amiga me fez posar em
frente à parede vermelha, no MASP, que tinha o título da exposição em
cartaz: duas vidas de Mário de Andrade. Na foto, um sorriso largo e o
prenúncio de um caminho bifurcado. No yellow brick road. Presentes, porém, as bruxas: boa e má (eu sou as duas).
Aprendo
a navegar na ambiguidade como quem acabou de descobrir o que é o mar.
Enjoo, fico tonta, perco o rumo. Há dias em que quero mergulhar na noite
escura, perder-me no que me assombra, para trazer qualquer coisa de
mistério às pontas dos dedos. A luz do dia, todavia, sempre me chama e
eu preciso voltar. Mesmo que grogue e inebriada.
Ainda é duro desdobrar-me em médica — ou defensora — e monstro. Sei que nada disso tem cura e ainda bem. Nesse chiaroscuro, descobri que podem ser bastante belas as monstruosidades.
*Andressa Arce (@andressarce)
nasceu em Campo Grande, em 1984, no dourado quente do cerrado
sul-mato-grossense. Cresceu entre a beleza e a crueza das histórias da
fronteira, o surrealismo pantaneiro e a realidade urbana, que se deixa
pintar de vermelho pela poeira do planalto de Maracaju. É defensora
pública federal e mestra em Direito pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. No dia em que não fui, publicado pela editora Patuá, é seu primeiro livro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário