Fora o braço direito de João Paulo II, mas o seu breve papado foi decisivo para mudar a Igreja (e a preparar para Francisco), ao mesmo tempo que a fazia parte de todos os debates da contemporaneidade. Artigo do publisher do Observador, José Manuel Fernandes:
No
início desta semana soubemos que Bento XVI estava muito doente – foi
até um anúncio inesperado, feito pelo próprio Papa Francisco. Dias
depois foi noticiado que tinham querido levá-lo para o hospital, mas ele
preferira ficar no pequeno mosteiro em que vivia, no coração do
Vaticano. Ficou a aguardar o fim, e o fim chegou este sábado de manhã.
Haverá melhor exemplo de uma “morte digna”?
Joseph
Ratzinger desempenhou o seu papel até ao último suspiro, mesmo sendo
apenas (apenas?) Papa emérito. E desempenhou o seu papel seguindo
coerentemente algo que escreveu há mais de 60 anos, quando ainda era
apenas um jovem teólogo envolvido no Concílio Vaticano II – a Igreja do
futuro, para ele, passaria por a religião adquirir uma forma diferente
“mais magra na forma e no conteúdo, mas talvez mais profunda”. E não só:
devia abandonar o transitório para se focar no essencial, devia assumir
que as pessoas querem uma Igreja que “não tema a ciência nem precisa de
a temer”. De certa forma essa foi a batalha da sua vida, a que lhe
ocupou alguns dos mais importantes discursos do seu pontificado, a
conciliação entre a Fé e a Razão num mundo onde a Fé não pode estar
ausente de qualquer domínio nem ter temas tabu – daí que a sua primeira
encíclica, Deus caritas est, tenha abordado sem complexos o tema do amor
erótico, daí que tenha mudado tudo, literalmente tudo, no Vaticano ao
renunciar ao fim de apenas oito anos na cadeira de Pedro.
Não
sendo crente, mas não ignorando o papel que a Igreja Católica tem e
teve, segui com a maior atenção o seu papado e gostei, gostei mesmo, de
ver nele confirmada a previsão que fiz no texto que escrevi
no dia em que foi eleito: “Joseph Ratzinger era, provavelmente, o mais
próximo colaborador de João Paulo II. O seu grande cúmplice. Mas quererá
isso dizer que Bento XVI será apenas um mero continuador do Papa que o
antecedeu? Dificilmente.”
Não
foi de facto um mero continuador. Basta pensar na forma como João Paulo
II arrastou estoicamente o seu mandato mesmo quando já estava muito
doente e muito enfraquecido, e Bento XVI renunciou ainda bem lúcido, tão
lúcido que sabia não ter condições nem energia para imprimir ao
Vaticano as mudanças necessárias.
Já
muita coisa tinha feito, a começar por uma mudança radical da forma
como na Igreja se tratava o problema da pedofilia – foi ele que, era
ainda apenas o líder da Congregação para a Doutrina da Fé, levou um algo
renitente João Paulo II a assinar, em 2001, um decreto – Motu proprio
Sacramentorum Sanctitatis Tutela – que obrigou a que todos os casos
detectados lhe fossem comunicados enquanto “guardião da fé”, passando a
adoptar uma linha de “tolerância zero”; foi ele que, mal foi eleito
Papa, agiu disciplinarmente contra dois altos responsáveis que, há
décadas, iludiam as sanções por terem “protectores” no Vaticano; foi ele
que agendou entre as suas primeiras visitas idas a dois países onde os
escândalos eram maiores, os Estados Unidos e a Austrália; e foi ainda
ele que, na carta que escreveu aos cristãos irlandeses, um documento
ainda hoje referenciado, não só não se limitou a pedir perdão, antes
passou a tratar os abusos como “um crime”. Não terá percorrido todo o
caminho, mas dificilmente o Papa Francisco o poderia ter percorrido sem a
ruptura de Bento XVI relativamente aos hábitos do tempo de João Paulo
II.
Foi
preciso coragem? Certamente, mas o jovem Joseph Ratzinger já dera
provas de coragem quando desertou do exército alemão, onde fora
incorporado contra vontade aos 16 anos, como voltaria a dar sinais de
uma imensa coragem ao quebrar a rotina secular da Igreja e ao renunciar
ao Papado, talvez a mais revolucionária – não creio exagerar nas
palavras – decisões da sua longa vida.
E
a mim não me surpreendeu essa coragem nem essa capacidade promover a
mudança por duas ordens de motivos. Primeiro, porque Bento XVI era uma
grande teólogo, e como teólogo era alguém que dominava amplamente a
doutrina e, por isso mesmo, alguém capaz de saber até onde podiam iam as
mudanças sem recear passar fronteiras mais problemáticas. Isso mesmo me
dissera, numa entrevista logo após a sua eleição,
o então bispo auxiliar de Lisboa D. Manuel Clemente: “são geralmente os
homens que estão muito dentro da tradição, que conhecem muito bem todos
os elementos que estão em causa, os que se sentem seguros para
avançar”. O que me leva ao segundo ponto: Joseph Ratzinger tinha sido
visto como um “progressista” que o tempo tornara “conservador”, mas por
regra são os conservadores que têm melhores condições para mudar a
tradição evitando tanto o reaccionarismo como as tentações
revolucionárias. Por outras palavras: mais depressa encontramos um
reformista eficaz num conservador do que num revolucionário tonitruante.
Mesmo
assim Bento XVI nunca teve aquilo a que habitualmente se chama “boa
imprensa” – ao contrário, felizmente, de Francisco –, pelo que não foram
poucas as vezes que tive de ir à fonte – o site do Vaticano – ler os
seus textos pois eles tinham sido treslidos pelos jornalistas. Uma das
vezes que isso que aconteceu foi quando Bento XVI se tornou numa das
primeiras vítimas da hoje muito em voga “cultura de cancelamento” – ou
seja, quando teve de desistir de dar uma conferência na Universidade de
Roma, “La Sapienza” (A Sabedoria), por pressão de um grupo de
professores.
O
tema não podia ter deixado de ser a relação entre Fé e Razão e o texto
de Bento XVI era de uma enorme abertura e universalidade, para além de
ser imensamente erudito – não por acaso muitos o consideraram “um dos
maiores intelectuais da Europa”, não por acaso manteve animadas
controvérsias com grandes figuras do pensamento europeu, como Habermas.
Nessa
conferência que os alunos dessa universidade não puderam ouvir ele
defendeu que “o perigo do mundo ocidental é que o homem, obcecado pela
grandeza do seu saber e do seu poder, esqueça o problema da verdade. E
isto significa que a razão, no fim do dia, acabará por vergar-se às
pressões dos interesses e do utilitarismo, perdendo a capacidade de
reconhecer a verdade como critério único”.
Não
encontro melhor forma de terminar este texto de homenagem a alguém que
muito admirei — mesmo não tendo eu o dom da Fé — do que recordar esta
frase que cada dia que passa torna mais verdadeira.
(Escrevi bastante sobre o Papa Bento XVI, pelo que quando renunciou reuni aqui esses vários textos, que incluem a participação numa conferência na Universidade Católica)
Postado há 16 hours ago por Orlando Tambosi
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