BLOG ORLANDO TAMBOSI
O não reconhecimento de programas laicos sobre filosofia brasileira não é uma explicação razoável para o declínio do conservadorismo, como pretendia Flávio Gordon. Esta causa, como já argumentei, deve ser buscada dentro da Igreja. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
O
melhor documento para averiguar a censura perpetrada pelos pupilos do
Pe. Vaz não é o artigo de Vélez, mas sim a coletânea Liberdade acadêmica
e opção totalitária, organizado por Paim. Ocorreu o seguinte: em março
de 1979, uma professora de filosofia da PUC-Rio pediu demissão porque o
chefe de departamento, Raul Landim, havia vetado a impressão de um texto
de Miguel Reale no material institucional do Departamento “face ao
caráter polêmico e controvertido das [suas] atividades políticas”.
Miguel Reale havia sido um notório teórico integralista, além de reitor
da USP em suas ocasiões (49-50 e 69-73). Raul Landim era um pupilo do
Pe. Vaz e, hoje, notório estudioso da obra de São Tomás. Paim, então
professor da PUC-Rio, pediu demissão em solidariedade à colega e jogou a
história no ventilador. Resultado: editoriais do Jornal do Brasil, d’O
Globo e do Estadão contra o episódio de censura na PUC-Rio, mais uma
chuva de artigos de opinião. Quase todos ficaram contra Landim. Exceções
foram o Pe. Vaz, o Pe. Olinto e o sociólogo Simon Schwartzman (também
parte da entourage do Pe. Vaz, mas que fez um texto isento apontando
para a necessidade de parâmetros acadêmicos na seleção de textos
institucionais, que devem se preocupar com o assédio da política sobre a
academia). Um desfecho do qual o leitor da coletânea não se inteira é
que a celeuma foi seguida pela demissão de Landim.
“A
intelectualidade estará dividida entre liberais e totalitários”, diz
Paim na apresentação da coletânea. Vale frisar, porém, que o seu amigo
Reale não era nenhum santo.
Acuse-os do que faz?
Em
seu segundo reitorado, Reale criou um órgão secreto de inteligência
chamado AESI (Assessoria Especial de Segurança e Informações) cujo fito
era investigar as ideologias dos alunos e professores que fossem ou
quisessem ser parte da USP e denunciá-los à Repressão. Segundo relata o
Estadão na matéria “SNI barrou expurgos” (23/3/2018),
“a assessoria [AESI] produziu 2.895 documentos entre 1973 e 1979
enviados ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops), ao 2.º
Exército e ao SNI.” Os professores bem relacionados com a reitoria
passaram a denunciar os colegas a fim de promover expurgos e açambarcar a
verba da pesquisa. Assim o SNI parou de dar credibilidade às denúncias.
Como diz a matéria sobre um caso (o relatório da AESI contra o físico
Oscar Sala), “para o SNI, o documento da AESI ‘insere-se num contexto de
luta pelo controle administrativo da Fapesp e do manejo de suas
vultosas verbas’. Por fim, os agentes concluíam: ‘Não é, em essência,
documento válido e merecedor de crédito’.”
Pois
bem: a acusação de Vélez aos pupilos do Pe. Vaz da APML é a de que
teriam feito a mesma coisa que os anticomunistas da USP, só que em plano
federal. Em vez de FAPESP, seriam a CAPES e o CNPq. Para explicar como
“marxistas-leninistas”, em vez de anticomunistas, se aliariam aos
militares, insere-se a teoria de que foi uma negociação para que a APML
abandonasse a luta armada. Os militares estariam preocupados porque a
APML não ingressara na vida partidária e isso seria um indício de que
iriam pegar em armas. A negociata (trocar o controle das verbas pela
desistência da luta armada) teria ocorrido entre 80 e 82.
Alguns
apontamentos: 1) Na década de 70, a APML era ateia e não tinha mais
deferência ideológica pelo Pe. Vaz, de modo que ser pupilo do Pe. Vaz e
ser da APML são coisas mutuamente excludentes. 2) A APML ingressara na
vida partidária, pois se fundira com o PCdoB. 3) Não há uma relação
necessária entre virar partido e sair do terrorismo, como mostra o
próprio PCdoB no Araguaia. 4) O ciclo que vai da JUC radicalizada à APML
compreendeu três décadas (50, 60 e 70), de modo que não faz sentido
presumir coesão entre o Prof. Landim (um pupilo do Pe. Vaz) e os
estudantes maoístas da APML.
Tudo isso torna a história de Vélez muito implausível, para dizer o mínimo.
Quem seriam os aparelhadores?
Se
estivesse vivo, o Pe. Vaz teria 101 anos. Seus pupilos, se vivos, estão
na casa dos 80 anos. Já os ativistas estudantis da fase maoísta estão
hoje na casa dos 60 anos. Em 1980, não tinham idade para tomar a direção
da filosofia da CAPES. Se alguém aparelhou a CAPES, foi da primeira
leva.
O
pivô da briga de papel, Raul Landim, de fato foi importante na
institucionalização da pesquisa em filosofia. Ele não foi o único da AP:
o artigo da Unicamp cita
uma ampla influência do “militantismo católico” sobre a filosofia no
Brasil. Os nomes citados são o do fluminense Raul Landim, mais os
mineiros Guido Antonio de Almeida, Walter José Evangelista, José de
Anchieta Corrêa e Hugo César Tavares. Os dois primeiros compõem a linha
analítica da UFRJ e os demais últimos ficaram na UFMG. Os dois primeiros
eu conheço de nome; dos demais eu nunca tinha ouvido falar. Walter
Evangelista em 75 havia se convertido ao marxismo e estava na Bélgica
terminando o doutorado sobre Althusser. A crermos no seu Lattes,
orientou apenas quatro doutores. Parece provável, então, que ele tenha
sido o membro da AP que levou a influência de Althusser nos final dos
anos 60. Dos demais, não encontro informações detalhadas. Seja como for,
o fato apontado no artigo da Unicamp é que essa turma se doutorava em
Louvain, na Bélgica.
Se
há aparelhadores da filosofia pupilos do Pe. Vaz, hão de ser estes, que
têm idade e estão nas raízes da criação da ANPOF. Creio que seja ônus
de Vélez e seus partidários explicar como qualquer deles teria condições
de adotar táticas de guerrilha, e como conseguiam manter vínculos com a
APML nos anos 70 estando na Bélgica.
Quando a nomeação de Vélez trouxe esse episódio de volta à tona, a extinta revista Época procurou Landim. Cito-a:
“Disse [Landim] que a exclusão do curso de filosofia brasileira estava
relacionada a uma modernização do departamento para adequá-lo à
realidade de outros cursos de filosofia no mundo. Da mesma forma, a
antologia de textos distribuída aos alunos passou a incluir apenas
filósofos considerados clássicos. ‘Fui da AP, mas não sou marxista, como
também não era o padre Vaz. Estávamos preocupados em melhorar a
competência dos alunos, mas o Paim transformou tudo em questão
ideológica’, disse a ÉPOCA Landim […]. A querela não terminou bem para
ele. Seis meses depois, Landim e outros professores perderam seu emprego
na PUC. Ele acha que a polêmica teve um efeito indireto em sua saída.”
Hipérbole falsa
A
Época também ouviu Paim: “A USP é hostil ao pensamento brasileiro. A
Capes está na mão dos comunas, dos marxistas. O MEC só dá passagem e
bolsa para quem está na chave gramsciana. Se você não estudar Gramsci,
você perde o emprego. É exatamente isso.” Dois apontamentos aqui: Paim
aponta, corretamente ao meu ver, que a USP ditou as normas da
institucionalização da filosofia no Brasil. Na verdade, isso é senso
comum na filosofia acadêmica brasileira, e eu mesma sou fruto desse
modelo uspiano de formação. Nele, o aluno escolhe um filósofo “clássico”
(sempre estrangeiro) para estudar e se torna um “historiador da
filosofia” que escreve obras de “comentário” seguindo o método
estruturalista expresso por Victor Goldschmit (pupilo do católico
Étienne Gilson) em “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos
sistemas filosóficos”. É uma coisa muito específica e fácil de
reconhecer. Eu sou especialista em Hume; Chauí, em Espinosa. O próprio
trabalho de Paim é o de um historiador da filosofia que faz análises
estruturais de textos. Ele só diferencia do estilo uspiano por causa da
amplidão do seu escopo e por formar um cânone (brasileiro) por conta
própria.
O
predomínio de São Paulo pôs o Rio de Janeiro e Minas Gerais em segundo
plano. Minas tem notas da Capes excelentes, mas não impôs um “modelo
UFMG” de fazer filosofia, nem lotou departamentos com seus egressos
Brasil afora. Quem fez isso foi a USP, que a seu turno era um
“departamento francês ultramar”.
Quanto
à outra afirmação de Paim, é simplesmente falsa. O próprio Landim é um
especialista em São Tomás que não chega perto de Gramsci ou Marx. Eu,
que estudei num departamento paulista da Bahia, só tive um professor
especialista em Marx. Era um peixe fora d’água: mais velho do que os
colegas egressos de São Paulo (foi o único que se aposentou enquanto eu
estudava), tinha se formado no México.
Last,
but not least, os dois egressos da AP que ficaram na UFRJ eram
opositores do modelo USP. Muitas das diatribes contrárias ao
estruturalismo uspiano vêm dos ditos analíticos, que às vezes até se
especializam num filósofo, mas preferem pensar a história da filosofia
focando em problemas a serem tratados diacronicamente pela lógica, em
vez de sistemas fechados a serem estudados somente em seus próprios
termos por um historiador. Raul Landim e Guido Almeida, embora
“famosos”, são de uma corrente minoritária. Aliás, a filosofia analítica
da PUC-Rio também sofreu bastante com a hegemonia paulista. Vide (vou
deixar o leitor pesquisar, para não me alongar) Oswaldo Chateaubriand,
ou ainda a filosofia do paranaense Newton da Costa, de reconhecimento
internacional.
O que deve ter acontecido
O
certo é que o modelo USP tratorou iniciativas de outros cantos do país.
Paim estudava um tema fora do escopo tido como legítimo pela USP. (Vale
apontar que tampouco o Pe. Vaz é conhecido ou estudado – ele estava
junto com Reale na apostila vetada.) Além disso, Paim pediu demissão da
PUC e foi para a Gama Filho, uma instituição privada que sequer tem o
amparo da Igreja. Ora, na institucionalização levada adiante pelos
militares, as universidades públicas foram de longe as que mais
cresceram. Com qualidade e dinheiro, passou a atrair o resto do alunado
de elite que ainda escolhia universidades privadas. As federais só
declinaram após a gestão Haddad em Lula II. Paim teria chances de
resistir ao modelo USP – como Landim resistiu – se ao menos tivesse
escolhido uma universidade pública para trabalhar.
Há
uma diferença entre estudar as escolas de pensamento que moldaram a
política brasileira e estudar polemistas vivos (como Reale e o Pe. Vaz à
época). É uma pena que a polêmica tenha transformado “estudar filosofia
brasileira” em “estudar Reale e outros anticomunistas”. Foi uma
injustiça grosseira e imperdoável com a obra de Paim. Isso o levou a uma
revolta justificada, e o sentimento de revolta conduz a hipérboles.
Em
sua entrevista à Época, ele se sentia especialmente traído porque
ajudara os comunistas: “Excluíram o Miguel Reale porque ele tinha sido
integralista, o que é um absurdo. Eu tinha arrumado bolsas para os
marxistas, em pleno governo militar, porque achava um absurdo a
discriminação a eles, mas a convivência é difícil. Você não deve dar
cargo de poder a eles, porque eles vão liquidar os outros. É da alma
deles.” O próprio Miguel Reale, porém, institucionalizou um macartismo
dentro da USP às escondidas. A AESI só foi descoberta em 2018, e só
podemos crer que Paim não fazia ideia das presepadas do amigo
ex-integralista. Por outro lado, a esquerda devia saber muito bem. E por
isso deve ter ganhado uma aversão indelével por Paim, que expôs os
esquerdistas no jornal em plena ditadura enquanto retratou o Inquisidor
Mor da USP como mártir da liberdade de expressão.
A
influência da turma da AP não deve ter servido para muita coisa além de
jogar para cima a avaliação da Kriterion. O não reconhecimento de
programas laicos sobre filosofia brasileira não é uma explicação
razoável para o declínio do conservadorismo, como pretendia Flávio
Gordon. Esta causa, como já argumentei, deve ser buscada dentro da
Igreja.
Quanto à tréplica
Por
fim, devo dizer que sua última tréplica ficou aquém do que eu esperava.
1) Desconheço comunista e nazista que tenham sido virtuosos por causa
de sua ideologia, e não apesar ou a despeito dela. 2) Paim usa
"progressista" de um frouxo, sem ser uma definição. Afinal, o
positivismo no Brasil teria um papel progressista, ao passo que na
Europa era visto como algo atrasado. Paim não se interessa pela Nova
Esquerda, que tem afinidade com a ideologia racista e neomalthusiana
surgida no mundo de língua inglesa conhecida como progressismo. Sua
experiência de militar brasileiro e bolchevique soviético fizeram dele
um grande estudioso do positivismo e do marxismo ortodoxo e suas
ramificações. Mesmo com as ciências sociais da USP tomadas pelos
intelectuais bancados pela Fundação Ford (entre os quais se contam
Florestan Fernandes e Abdias do Nascimento), Paim não deu muita bola
para a corrente. Pode ter sido porque ela só chegou aos departamentos de
filosofia brasileiros no século XXI...
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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