Com editores e diretores que se amedrontam e se dobram diante da
intolerância ao livre debate de ideias que vêm de baixo, a imprensa
brasileira jamais será capaz de resistir à repressão que vem de cima.
Diego Schelp, via Gazeta do Povo:
Um grupo de intelectuais e artistas renomados — de esquerda, centro e
direita — divulgou na última terça-feira (7) um manifesto contra a
cultura do cancelamento no site da Harper's Magazine, uma revista
americana. Com o título "Carta sobre Justiça e Debate Aberto",
signatários como o linguista e conspiracionista de esquerda Noam
Chomsky, o escritor indiano/britânico Salman Rushdie, o cientista
político conservador Francis Fukuyama e até a criadora de Harry Potter, a
escritora J. K. Rowling, entre outros, dizem que o "clima de
intolerância" e a censura estão se enfronhando entre as pessoas que
dizem lutar contra as "ameaças à democracia" de nosso tempo.
"Não se pode permitir que a resistência endureça sua própria forma de
dogma e coerção", diz (em tradução livre) o manifesto. Essa coerção se
manifesta por meio de "uma intolerância a visões discordantes, uma onda
de humilhações públicas e ostracismo e a tendência de dissolver questões
políticas complexas em uma certeza moral que provoca cegueira".
A carta aberta dá exemplos de como a livre troca de ideias está sendo
reprimida: "Editores são demitidos por publicar textos controversos;
livros são retirados do mercado por alegada falta de autenticidade;
jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos; professores
são investigados por citar obras de literatura em sala de aula; um
pesquisador é demitido por compartilhar um estudo acadêmico revisado
pelos pares; e chefes de organizações são dispensados por cometer atos
que às vezes não passam de erros desajeitados. Quaisquer que sejam os
argumentos em torno de cada episódio particular, o resultado tem sido o
estreitamento progressivo do que pode ser dito sem a ameaça de punição."
Alguns dos principais jornais e sites brasileiros repercutiram a
carta dos intelectuais contra o que podemos chamar de "cultura do
cancelamento". Editores e diretores dos principais veículos de
comunicação do país certamente acompanharam a discussão que o manifesto
gerou. Mas, em alguns casos, não adiantou nada. Entrou por um ouvido e
saiu pelo outro.
Poucos dias depois, o escritor e jornalista Leandro Narloch foi
demitido da CNN Brasil depois de ser acusado por alguns blogueiros e
pela militância das redes sociais de ter feito comentários homofóbicos
em um programa do canal de TV. O tema do noticiário era a permissão para
que homens gays doem sangue, concedida em decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF). Narloch se manifestou claramente a favor da decisão, que
derrubou uma proibição injusta e discriminatória.
Mas isso não o livrou do "cancelamento". Seu pecado foi ter usado uma
expressão que caiu há tempos em desuso e é considerada preconceituosa
pela comunidade LGBTQ+ ("opção sexual") e formular uma explicação
atrapalhada sobre as estatísticas que justificavam a proibição à doação
de sangue por homens gays. Mas, em essência, o que ele defendeu é que a
restrição obedeça a um critério de comportamento de risco, seja o doador
hetero ou homossexual. Ou seja, repito, ele se posicionou a favor da
derrubada da regra discriminatória para a doação de sangue, baseada no
conceito de "grupos de risco".
Não adiantou Narloch tentar se explicar. Seus chefes na CNN Brasil,
incapazes de analisar o caso com serenidade, se renderam à campanha de
cancelamento e o demitiram de uma forma que contribuiu para a humilhação
pública. Pior que a demissão é o carimbo de homofóbico, coisa que ele
não é. O caso Narloch pode ser facilmente enquadrado nos exemplos de
repressão à livre troca de ideias listados na "Carta sobre Justiça e
Debate Aberto" e citados acima. Foi um episódio explícito de
"estreitamento progressivo do que pode ser dito sem a ameaça de
punição".
Narloch tem um dom para produzir polêmicas e muitas vezes erra a mão.
Mas um país precisa de pessoas que desconfiam de explicações prontas e
da lógica do senso comum. Um polemista pode e deve ser criticado. Mas
calar uma voz polêmica é o mesmo que calar a própria voz. O próximo a
ser cancelado pode ser quem cancela. O resultado é o fortalecimento
justamente dos extremos que se deseja combater, como alertaram os
autores do manifesto acima.
Prova disso é que um dos poucos que defendeu Narloch foi o presidente
Jair Bolsonaro. O presidente escreveu no Twitter que o escritor é um
dos que têm "idéia própria e independência. Isso já é suficiente para
serem considerados nocivos dentro de grande parte da mídia, hoje
completamente dominada pelo pensamento de esquerda radical".
Mas não nos deixemos enganar pelas palavras de Jair Bolsonaro, que
apenas finge se importar com idéias próprias e independência
jornalística. Afinal, ele vive reclamando de quem o critica na imprensa e
colocou seu ministro da Justiça, num evidente desvio de função, para
enquadrar na Lei de Segurança Nacional um cartunista que o chamou de
nazista (Renato Aroeira) e, na semana passada, um colunista da Folha de
S.Paulo que expressou o desejo que ele morra de covid-19 (Hélio
Schwartsman). Estão ambos errados, na minha opinião. Isso não justifica
censurá-los ou puni-los. Alguém deveria mostrar a Bolsonaro as charges
que eram feitas para desmoralizar e atacar D. Pedro II — e que o
imperador tolerava por respeito à liberdade de expressão.
Os blogs, sites e perfis em redes sociais que apoiam Bolsonaro e que
ele já chamou de sua "imprensa a favor" têm seus próprios métodos de
humilhação pública e destruição de reputação de quem pensa diferente. É a
cultura do cancelamento da esquerda com sinal trocado.
"A restrição do debate, seja por um governo repressivo ou por uma
sociedade intolerante, invariavelmente prejudica aqueles que não têm
poder e torna todos menos capazes de ter participação democrática. O
caminho para combater idéias ruins é pela exposição, pelo argumento e
pela persuasão, não pela tentativa de silenciá-las ou varrê-las para
longe", diz o manifesto dos intelectuais. Faltou combater Narloch com
argumentos.
Com editores e diretores que se amedrontam e se dobram diante da
intolerância ao livre debate de ideias que vem de baixo, a imprensa
brasileira jamais será capaz de resistir à repressão que vem de cima.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário