Na distante e gélida Moscóvia, Putin é exibido à vindicta popular na Praça Vermelha. A Ucrânia é livre. Miguel Sousa Tavares, Boaventura Sousa Santos e Jerónimo de Sousa duvidam de tudo. Crônica do professor Paulo Tunhas para o Observador:
“Se
pudesse, anexava as estrelas”, dizia Cecil Rhodes, na idade do ouro do
império britânico, que, naturalmente, passou a incluir a Rodésia. Não
quero entrar na vexata quaestio dos males e bens do imperialismo
britânico. Acontece apenas que, para Cecil Rhodes, era possível anexar
imensas regiões de África, o que, de facto, se passou. As estrelas eram o
impossível limite. Em contrapartida, parece singularmente difícil a
Vladimir Putin anexar realmente alguns oblasts da Ucrânia, como os de
Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia. Putin fica muito abaixo do céu
estrelado. As populações não o parecem querer e o exército ucraniano
recupera, dia após dia, novas zonas das regiões. As tropas invasoras
russas fogem, depois de aterrorizarem os habitantes. O fracasso é
inevitável.
Há,
como se sabe, sonhos que entram em choque com a realidade. Eu, por
exemplo, tenho um típico sonho de velhote: anexar Scarlett Johansonn e
uma ilha grega, de um só golpe. Parece-vos impossível? A mim, confesso,
também se me afigura difícil, até porque tenho alguma experiência de
falhanços no capítulo. Mas também guardo com prazer a memória de alguns
sucessos inesperados e, sobretudo, a tarefa parece-me muito mais viável
do que a de Putin. Ter Scarlett Johansonn (e uma ilha grega) é uma
brincadeira de menino de coro comparada com a ambição de Putin. E, se
pudesse organizar um referendo à minha maneira, as pedrinhas todas da
ilha deserta votavam por mim e a bela Scarlett esquecia num ápice a pura
e simples existência do pobre Colin Jost (tive de ir ver o nome à
Wikipédia, coitado dele), movida por um acordo irreprimível com a ordem
secreta da natureza e com a mais profunda vocação espiritual da espécie
humana. O Observador perderia sem dúvida um colunista das quintas – a
felicidade ininterrupta não interessa a ninguém –, mas há sacrifícios
inescapáveis. Pensem que também um dia Marcelo deixará de ser
Presidente. Há egoísmos que só podem honrar a nossa espécie e é bela a
satisfação vicária com a felicidade alheia – sobretudo a minha.
De
qualquer maneira, o verdadeiro assunto da coluna de hoje é – tenho mais
pena do que posso dizer – mais prosaico. Desde 24 de Fevereiro que se
ouvem um pouco por todo o lado vozes (sem o grave veludo adamascado
protector da intimidade da alma da minha companheira de ilha) que
proclamam insistentemente que a guerra da Ucrânia se iniciou por um
ataque insidioso do Ocidente à Federação Russa, em flagrante violação da
ordem natural das coisas. O Ocidente teria mobilizado todas as suas
forças para destruir os restos de civilização que se lhe opõem. Putin
ter-se-ia limitado a reagir. Ora, segundo todas as aparências, tudo isto
parece uma inversão caracterizada das relações causais efectivas,
patentes aos olhos de todos. Como é isto possível?
Nestes
casos, não há nada como ir às fontes. E a fonte principal na matéria é,
é claro, o quarto capítulo do livro do Génesis, onde se conta o
assassinato de Abel por Caim. Li algumas traduções (a de Robert Alter,
de quem já tinha começado a ler um livro sobre a narrativa bíblica,
pareceu-me particularmente boa) e comentários (como o de Bill T.
Arnold). Particularmente útil foi um livro, que se pode ler
integralmente na net, da autoria de John Byron, Cain and Abel in Text
and Tradition. Jewish and Christian Interpretations of the First Sibling
Rivalry, Brill, 2011. John Byron não utiliza apenas os textos
canónicos, mas igualmente os chamados pseudepígrafos, textos falsamente
atribuídos a autores estabelecidos, e os apócrifos. O que se ganha no
conhecimento da exegese dos originais é fascinante.
Por
exemplo, se lermos os comentários canónicos, centramo-nos numa questão
fundamental: porque preferiu Deus as ofertas de Abel, o pastor, às de
Caim, o cultivador do solo? A questão é de monta, porque é da expressão
dessa preferência que resulta, na aparência, o assassinato de Abel por
Caim. E as respostas, como é óbvio, oferecem uma extraordinária
subtileza e complexidade. Mas se acompanharmos a nossa leitura pela dos
pseudepígrafos, há um novo universo de questões e respostas que se nos
abre.
Assim,
nota-se que Caim poderá não ter sido filho de Adão mas do demónio, o
que explicaria a sua inveja e os tristes resultados desta. O “conhecer”
bíblico ganha, nesta leitura, uma outra ressonância: Adão sabia aquilo
de que Eva era capaz. E não ficamos por aqui. A mulher com que Caim se
veio a casar, Labuda de seu nome, era, pela força das circunstâncias,
uma sua irmã. Mas as coisas complicam-se. Tanto Caim como Abel tinham
irmãs gémeas. Acontece que Caim julgava de maior beleza a irmã que havia
sido destinada a Abel do que aquela que lhe fora atribuída. A raiva
pelo facto seria a verdadeira causa do assassinato. Cherchez la femme,
com efeito.
Por
acaso, não sou coscuvilheiro. Nunca fui muito e, com a idade, atingi
mínimos históricos. Mas acho a história desta família originária
apaixonante e prometi-me, no futuro, saber mais dela do que sei. Porque,
de facto, a única coisa que sei de certeza certa e não se encontra
contestada por nenhum autor é que foi mesmo Caim que matou Abel e não o
contrário. O que, parecendo que não, não é pouco. À sua maneira,
confirma o que o nosso espírito e os nossos sentidos testemunharam
quanto à guerra da Ucrânia: foi a Rússia que a iniciou. A diferença é
que Putin não conseguiu matar a Ucrânia. Mesmo vivendo todos a leste do
Paraíso, há lugares mais recomendáveis do que outros e os habitantes
desses lugares até se têm portado bem, pese aos muitos peritos da
geoestratégia do Éden.
Entretanto,
o mar azul não mexe, excepto para mostrar que está vivo e que participa
da nossa existência. Ao longe, mas não longe demais, saltam os
golfinhos. A recentemente anexada Scarlett barra-me as costas com
protector solar. Na distante e gélida Moscóvia, Putin é exibido à
vindicta popular na Praça Vermelha. A Ucrânia é livre. Miguel Sousa
Tavares, Boaventura Sousa Santos e Jerónimo de Sousa duvidam de tudo. Na
nossa ilha, escondemo-nos dos helicópteros dos produtores de Hollywood,
que buscam desesperadamente Scarlett, com a ajuda dos golfinhos que
sabem como nos guiar para lugares secretos. Somos heróis, e não apenas
por um dia – pela eternidade toda, sem uma só horinha a faltar, sob um
sol irrepreensível.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário