MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 30 de outubro de 2022

Bolívar Lamounier adverte: “A sociedade brasileira hoje está dividida de alto a baixo”

 



Marcelo Godoy e Eduardo Kattah
Estadão

O cientista político Bolívar Lamonier afirma que divisão atual da sociedade não tem precedente em nossa história. “Pode hoje dizer, sem medo de errar, que esta crise é muito mais perigosa e pode levar a um período razoavelmente longo de conflito.” Ele conclui que o País está diante de uma segunda década perdida. O autor de “Tribunos, profetas e sacerdotes” imagina o seguinte cenário: “Crime organizado, endemias, uma política totalmente desorientada”, onde ninguém mais diz coisa com coisa”.  Nesse quadro, pensa o cientista político, a vida vai piorar bastante. Cético? “Cético não, eu estou desesperado.”

Apesar do pessimismo, Lamounier reafirma a convicção na defesa da democracia do liberalismo. “Nasci democrata liberal e espero morrer democrata liberal, mas não consigo entender como possa funcionar um País sem, pelo menos, alguns partidos sérios.”

O senhor disse que não estamos diante de uma polarização eleitoral, mas de uma terceira onda de desavenças, só comparável ao período do getulismo/antigetulismo nos anos 1950 e a dos anos entre 1961 e 1964, da crise da renúncia ao golpe. Por que o senhor vê dessa forma?
Em primeiro lugar porque esta crise atual me parece muito mais grave. Naquela época, a sociedade estava dividida no plano das elites e das classes altas. Não havia tanto rancor na sociedade. Hoje, a condutividade atmosférica é impressionante. Tem famílias que não se falam mais por razões políticas, dentro de casa. Parece-me fora de dúvida de que a sociedade está dividida de alto a baixo. Qual sociedade? Uma sociedade 90% urbana.

Essa é a singularidade desse momento? É a possibilidade de um período longo de conflitos de vários tipos por entrada em cena do conflito político sério. Queira Deus que não haja violência. Mas, política conflituosa, nós vamos ter.

Tem dois fenômenos que um próximo censo pode mostrar: o aumento do tamanho dos evangélicos e a força do agronegócio. Como isso se relaciona com as elites, que sempre foram urbanas?
Exato. Conflito religioso nunca tivemos em nossa história. Esse é um fenômeno recente. E devemos ter em mente que nem todo evangélico é rancoroso. Mas que há um certo antagonismo entre uma parte do evangelismo e do catolicismo. Evidente que há. Mas o que me preocupa mais é que o Brasil não se enxerga mais. Ele não tem um espelho para se ver. Estamos falando de coisas que já deviam estar perdidas no passado, há muito tempo. A nossa média de crescimento anual por habitante é de 2,5%. Recentemente, o professor Edmar Bacha revisou esses números desde 1900 e constatou que é isso mesmo. Crescendo nesse ritmo, vamos levar 28 anos para dobrar essa renda. Então, imagine o seguinte cenário: crime organizado, endemias, uma política totalmente desorientada, ninguém mais diz coisa com coisa. Nesse quadro, a vida vai piorar bastante.

A democracia liberal perde legitimidade junto a camadas da população que não conseguem enxergar nela um instrumento de melhora de suas condições de vida?
Sim, perde. A próxima geração, a menos que se adestre e se prepare com muito mais afinco para trabalhar, vai viver pior. E isso já está acontecendo. Há 50 anos, a tecnologia que os trabalhadores médios precisavam usar era banal. Hoje não é banal, não. Hoje, precisa de muito trabalho. Agora, veja bem, além desse período todo que vamos levar para dobrar a renda, o que eu vejo é que o Brasil não está estagnado, mas andando para trás. O País está em retrocesso, pois a taxa de crescimento do crime organizado é maior do que a da renda per capita.

Nessa análise do sr., a eleição não representa só a consolidação dessa desavença, mas a derrocada do centro, representado pelo PSDB…
Eu vou te pedir licença para ir direto ao ponto. O Brasil hoje não tem partidos políticos. O Brasil tem 30 siglas. Sigla é uma coisa que meia dúzia de pessoas vai ao tribunal eleitoral e apresenta um documento que recebe um carimbo. E aquilo vira um partido.

Inclusive o PT?
Inclusive o PT. O PT é mais partido que os outros, pois se formou há mais tempo e tem um líder populista de uma habilidade extraordinária. O PT vive do Lula e não o contrário. Tanto é que uma grande parte da militância petista é marxista. O Lula nem sabe o que é isso. Ele, provavelmente, não leu nem as três primeiras páginas do Manifesto Comunista. Ele é um populista clássico da América Latina, com uma diferença muito positiva: ele é esperto, ele aprendeu a falar coisas, como a palavra ‘tergiversação’ ou a expressão ‘ou seja’. Ele é liso, como se diz no futebol. E pode, com certa credibilidade, nesse momento, fazer o papel de um possível pacificador do País. Isso tem alguma credibilidade, pois não temos outro líder.

E Bolsonaro?
Temos uma entressafra de qualidade duvidosa. O Jair Bolsonaro, evidentemente, não se apresenta, não quer e não tem preparação para pacificar o País de jeito algum. Ele quer botar fogo. O problema partidário nosso é dramático. Eu nasci democrata liberal e espero morrer democrata liberal, mas não consigo entender como possa funcionar um País sem, pelo menos, alguns partidos sérios. O MDB? É uma federação de oligarquias.

Isso ainda é um marco de nossa realidade para entender por que nossa democracia é disfuncional? Para melhorar, não seria necessário haver um sentimento de concórdia, lembrando que o senhor começou a expor a discórdia no País, essa era do rancor e do ressentimento? Isso não paralisa só a democracia, mas também a própria possibilidade de se constituir uma elite no País?
Precisamente. E enfraquece as instituições. Elas estão desmilinguindo. Quando um País tem uma boa estrutura democrática, poderíamos salvá-la se as instituições se mantivessem dignas do respeito e da confiança da população. Quando você não tem isso, você precisa de um muro de arrimo, de uma elite. Pelo menos, as camadas mais ricas precisam estar balizando as ações do poder público para que as ações não se desmilinguem de vez. Isso não está acontecendo A instituição por excelência da democracia, que é o partido político, não existe mais. E o desenvolvimento econômico com taxas pífias, é claro, aumenta a discórdia. Ela, assim, se autoalimenta.

O senhor parece discordar da ideia de (Max) Weber de que a modernidade faria o mundo caminhar em direção à racionalidade e à secularização?
Weber estava completamente errado. O mundo caminhou para dificuldades cada vez maiores. Saímos da 1.ª Guerra, e o mundo se tornou cada vez mais perigoso. A política internacional se tornou cada vez mais perigosa, como vemos hoje na Ucrânia, onde já havia ocorrido o Holodomor (a grande fome provocada pela coletivização forçada das terras, nos anos 1930).

Qual o papel do liberalismo hoje no mundo?
O papel do liberalismo é que não há outro modelo. A Rússia e a China podem ter bombas atômicas a vontade, mas não terão capacidade, daqui a 30 anos, de governar em paz os seus respectivos países. Não sei se você sabe, mas, na China, as pessoas que vivem no interior e trabalham na agricultura não podem entrar nas cidades grandes sem autorização oficial, literalmente, sem um passaporte. Estamos falando entre 600 e 800 milhões de pessoas. A robustez do sistema chinês baseia-se no totalitarismo mais férreo que o mundo já teve notícia. Há horror ao estrangeiro. É um país governando no limite da força. Por isso, o liberalismo, apesar de abrigar populações menores, é um modelo que pode ter legitimidade mundial e pode ser aplicado em qualquer País. Antigamente, dizia-se que países pobres não tinham condição de ter democracia. Ora bolas. Isso é inverter os termos do problema, pois a democracia não é feita para usufruto do progresso, mas ela é feita para promover o progresso dentro de uma certa paz. Não é só a Suécia ou a Dinamarca que têm essas condições.

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