Não só vivemos em tempos de morte da competência, desvalorização do conhecimento e abandono das referências de hierarquia e ordem, como também nos revemos em noções de pós-verdade e pós-factualidade. Patrícia Fernandes para o Observador:
“Resta-nos analisar a mais bela forma de governo, e o mais belo dos homens: a tirania e o tirano.”
(Platão, A República, Livro VIII)
1 Trigger warning
Uma
das expressões a que não podemos escapar para compreender os nossos
dias é a de “trigger warning”, popularizada em língua inglesa por
decorrer da cultura de sensibilidade máxima que o mundo anglo-americano
tem exportado para todo o Ocidente. Em língua portuguesa, não é fácil
encontrar uma expressão tão sedutora para exprimir o sentido de aviso,
advertência ou sinalização de conteúdos possivelmente ofensivos ou
capazes de despertar reações traumáticas.
Estamos
habituados a esses alertas quando, nos noticiários, o jornalista nos
avisa de que as próximas cenas – geralmente de guerra, terrorismo ou
acidentes graves – podem ferir a suscetibilidade das pessoas mais
sensíveis. E as gerações mais velhas recordarão a bolinha vermelha no
canto superior da televisão para indicar a desadequação dos programas ou
filmes para os mais novos. Mas este mecanismo popularizou-se agora no
mundo académico para assinalar livros potencialmente perigosos (como já
aconteceu com Immanuel Kant) ou temas potencialmente traumatizantes – tudo para que as gerações mais novas não sejam emocionalmente perturbadas na sua redoma de vidro.
É,
então, com o objetivo de não inquietar as almas mais sensíveis que
importa deixar um trigger warning ao livro publicado por Tom Nichols, em
2017: A Morte da Competência: os perigos da campanha contra o conhecimento estabelecido (que desenvolve o artigo inicial publicado no The Federalist).
E
que choque pode provir deste livro? Com todo o atrevimento, Tom Nichols
afirma que, ao contrário do que está a acontecer nas nossas sociedades,
uma sociedade democrática não nos torna iguais em termos de
conhecimento: há pessoas que sabem mais do que outras em diferentes
assuntos e não podemos afirmar que todas as opiniões são igualmente
válidas. Na verdade, as opiniões dos especialistas são mais válidas do
que as restantes e a maioria de nós é ignorante em relação à maioria dos
assuntos. A sua conclusão é a de que viver numa sociedade democrática
não pode ser desculpa para desvalorizarmos o conhecimento especializado e
não reconhecermos a nossa ignorância nos assuntos em que não somos
especialistas.
2 A morte da competência
O
diagnóstico de Tom Nichols debruça-se sobre a sociedade
norte-americana, reconhecendo que o seu país tem uma longa história de
desconfiança perante os intelectuais (o que justificaria, nomeadamente, a
sua longa tradição conspirativa). Já Alexis de Tocqueville tinha
relacionado a desconfiança em relação à autoridade intelectual com a
natureza da democracia norte-americana, mas Nichols considera que a
situação se tem agravado:
“O
conhecimento de base do americano médio é tão baixo que este há muito
deixou de estar “desinformado”, passou a fase de estar “mal informado” e
vai agora a caminho de se afundar no “agressivamente errado”. As
pessoas não se limitam a acreditar em coisas parvas, mas resistem
ativamente a aprender só para não terem de abdicar dessas crenças.”
O
livro parte de exemplos que lhe chegaram de outros especialistas e
debruça-se sobre o modo como as nossas sociedades têm destruído a noção e
o valor da competência, abordando diferentes dimensões, desde o ensino
superior à comunicação social e à internet – e cada uma delas merecendo
um artigo próprio.
De
acordo com Nichols, o caminho percorrido pelas sociedades democráticas
tem defraudado as expectativas mais otimistas: “Pensava-se que anos de
melhoria do ensino, o acesso facilitado aos dados, a explosão das redes
sociais e a remoção dos obstáculos à participação no debate público
iriam melhorar a nossa capacidade de deliberar e decidir.” Em bom rigor,
as coisas parecem ter ficado piores e “qualquer discussão pública sobre
qualquer assunto descamba numa guerra de trincheiras, em que o objetivo
mais importante é o de provar que a outra pessoa está enganada”.
É
fácil adivinhar que o autor escreve a pensar nos fenómenos que têm
marcado os últimos anos nos Estados Unidos, relacionando a morte da
competência com o crescimento dos movimentos populistas, a gradual
polarização política e social, a popularização das teorias da
conspiração, as ideias de fake news e pós-verdade e, claro, a eleição de
Donald Trump. E, neste sentido, a sua posição aproxima-se do argumento
apresentado por Jason Brennan, em Contra a Democracia, que já abordamos aqui.
Se
Nichols reconhece que as democracias são mais propensas à contestação
de tudo o que está estabelecido e que é isso mesmo que as torna
democráticas, defende ainda assim que elas não podem prescindir das
elites intelectuais e do conhecimento especializado que elas produzem.
Na verdade, levar o princípio democrático da igualdade até às últimas
consequências significaria destruir a própria democracia.
Concordemos
ou não com o valor absoluto do argumento de Nichols, não podemos deixar
de reconhecer o fenómeno que o autor identifica e a sua pertinência, na
medida em que ele nos confronta diretamente com a natureza das
sociedades democráticas: fará parte da essência da democracia dar o
mesmo valor à ignorância e ao conhecimento? (o que seria traduzido, na
versão de democracia liberal, pelo igual direito ao voto)
3 A morte da democracia
A
ideia de autodestruição da democracia não é uma novidade. Naquela que
foi a primeira grande crítica apresentada contra a democracia, o
ateniense Platão já tinha exposto esse argumento no Livro VIII de A República. De acordo com a dinâmica cíclica dos regimes de poder, as próprias condições democráticas conduzem à sua degradação:
“num
Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm
os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os precetores. No
conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em
palavras e em ações; ao passo que os anciãos condescendem com os novos,
enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não
parecerem aborrecidos e autoritários.”
Apesar
de encontrarmos naquele Livro uma análise mais materialista, a crítica
mais ampla de Platão à democracia tem um cariz essencialmente
epistemológico: a democracia é a forma de governo da maioria e a maioria
é ignorante, pelo que Platão não hesitaria em responder afirmativamente
à pergunta com que terminamos o ponto anterior. Um regime político que,
em vez de se basear no conhecimento dos mais sábios, conduz o seu
destino através das opiniões (doxa) das massas ignorantes não conseguirá
escapar ao caos. A crítica política de Platão à democracia corresponde,
nesse sentido, à crítica filosófica aos sofistas: encontramo-nos no
domínio das muitas verdades e não da Verdade-com-letra-maiúscula.
De
facto, foi essa cidade democrática que condenou Sócrates e é por isso
que Hannah Arendt diz, no delicioso ensaio com que abre A Promessa da Política:
“Foi ao longo do seu processo de reflexão sobre as implicações do
julgamento de Sócrates que Platão chegou à sua conceção da verdade como o
oposto exato da opinião e, ao mesmo tempo, à sua noção de uma forma de
discurso especificamente filosófica como oposto rigoroso da persuasão e
da retórica.”
A
consequência pode aparecer como surpreendente aos olhos de muitos: de
acordo com Platão, a democracia degenera em tirania. O grupo maioritário
(o povo) acabará por escolher um protetor e esse protetor tenderá a
reforçar o seu poder até adotar uma natureza tirânica. A tirania será,
por sua vez, alvo de deterioração, mas durante esse processo caberá ao
tirano repor a ordem social e impor, de alguma forma, uma só verdade.
Isso acalmará as massas até nova transformação social.
O
paralelo com a atualidade – com esta espécie de democracia tardia em
que vivemos – não é despiciendo: não só vivemos hoje em tempos de morte
da competência, desvalorização do conhecimento científico e abandono das
referências de hierarquia e ordem, como também nos revemos em noções de
pós-verdade e pós-factualidade. Mas estaremos condenados à morte da
democracia e ao apelo da tirania?
Professora da Universidade da Beira Interior
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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