Chuva de mísseis sobre a Ucrânia é o duro preço a ser pago pelas piadas provocadas pela sabotagem da ponte da Crimeia. Vilma Gryzinski:
“Happy birthday, Mr. President”, canta, como uma deusa loira e seminua, Marilyn Monroe de um lado da tela.
Na outra metade, explode numa bola de fogo a ponte de Kerch, a única ligação direta com a Rússia, sabotada espetacularmente na manhã de sábado.
O meme com Marilyn é apenas um exemplo da enxurrada de piadas feitas com Vladimir Putin, muitas envolvendo festinhas de aniversário – ele havia completado 70 anos um dia antes.
Quando
a ponte de 18 quilômetros foi inaugurada em 2018, Putin tomou o volante
de um caminhão carga pesada para atravessar o prodígio de engenharia e
fez o que fazia tão bem: projetar a própria imagem como um líder forte,
másculo, popular, realizador de obras, respeitado (quando não temido) e
defensor do orgulho nacional russo.
Agora,
virou alvo de ridículo por parte dos adversários que havia planejado
derrotar em uma semana. O Ministério da Defesa da Ucrânia, que
transformou a trolagem em arma da guerra da propaganda, comparou a
sabotagem da ponte ao afundamento do Moskva, o orgulho da frota russa no
Mar Negro, em 14 de abril. Tuitou, usando um termo que denota desprezo
pelos russos”
“O
cruzador Moskva e a ponte de Kerch – dois notórios símbolos do poder
russo na Crimeia ucraniana – foram abaixo. Qual será o próximo,
russkies?”.
Mesmo
antes da explosão que danificou a parte ferroviária da ponte e afundou
um pedaço de uma das duas autopistas, um dos mais prolixos defensores de
Putin, Vladimir Soloviov, apresentador do programa de maior audiência
da televisão russa, já reclamava: “O Ocidente inteiro começou a zombar
de nós”.
Depois dela, passou a defender ataques em massa para levar a Ucrânia de volta “à idade das trevas”.
O
bombardeio de Kiev e mais quatro cidades importantes atende à pressão
que várias forças pugilistas têm feito para que o ataque contra a
Ucrânia se torne mais violento ainda. Apesar do custo em vidas humanas e
em destruição de moradias e infraestrutura, bombardeios desse tipo têm
um efeito bem relativo no cômputo geral da guerra.
É
no campo de batalha, com contra-ofensivas ucranianas nas regiões de
Kharkiv e Kherson, que os russos, nas palavras de Soloviev, precisam
fazer alguma coisa para “aliviar este gosto amargo”.
“Vamos começar a anunciar novos lugares liberados. Do que vocês precisam para fazer isso? Trezentos mil já foram mobilizados”.
A
mobilização de reservistas na verdade tem sido outra comédia de erros,
com a convocação de homens idosos, doentes, integrantes de pequenas
minorias étnicas que teoricamente seriam isentos, entre outros absurdos.
Mais de 200 mil russos foram embora do país quando descobriram que a
promessa de que apenas militares que haviam assinado um contrato
voluntário iriam para a “operação especial” não valia nada.
As
redes sociais ficaram cheias de registros constrangedores. Convocados
revoltados pela falta de fardamento apropriado, equipamento bélico e até
comida. Numa cena aparentemente comprovada, apesar da insanidade que
revela, uma mulher que parece ser do departamento médico do Exército diz
aos reservistas que peçam às esposas e namoradas que mandem absorventes
e tampões menstruais, para estancar sangramento de ferimentos a bala.
Como o herdeiro do Exército vermelho, a força que, fundamentalmente, derrotou a Alemanha nazista, chegou a esse ponto?
“As
pessoas estão se borrando em volta dele, mas é medo sem respeito. Faz
uns dois ou três anos que perderam o respeito”, afirmou, em termos crus,
uma fonte supostamente bem informada ao site Meduza, que só pode
funcionar fora da Rússia. Segundo a fonte, desde a pandemia, Putin foi
deixando de se comunicar com ministros e outros funcionários
importantes. Hoje, só fala com o círculo mais íntimo, basicamente
formado pelos chefes dos serviços de informação que ele moldou à sua
imagem.
Na
verdade, fora desse círculo ninguém sabe o que Putin está planejando,
embora tudo indique que ele tenha assumido pessoalmente o comando da
guerra. Depois de um sucesso inicial, com os ucranianos batendo em
retirada da “ponte, terrestre” que faz um semicírculo na região
fronteiriça com a Rússia, a situação se inverteu. Um dado surpreendente:
hoje, mais da metade dos blindados do lado ucraniano são equipamentos
russos abandonados por tropas em retirada.
Mudar
de comandante no teatro de operações em pleno calor dos combates, como
aconteceu na semana passada, tende a ter poucos efeitos imediatos.
O
comando direto assumido por Putin evidentemente provoca comparações com
Stálin durante a II Guerra Mundial. Por causa dos expurgos que praticou
na cúpula das forças armadas soviéticas, da disposição de sacrificar
centenas de milhares de vidas apesar de alternativas menos mortíferas e
do poder concedido aos comissários políticos que vinham, armados, atrás
das linhas de frente – “No Exército soviético, é preciso mais coragem
para recuar do que para avançar”, dizia o ditador -, firmou-se a
convicção de que Stálin só ganhou a guerra com base na superioridade
numérica.
O
marechal Georgi Jukov, o comandante da vitória, fez uma avaliação
diferente – depois da morte de Stálin, claro; durante a vida dele,
manteve sempre a malinha de emergência à mão, esperando ser levado
preso, como tantos outros comunistas convictos que o monstro do Kremlin
mandou matar.
Jukov
escreveu que o supremo líder era “inteligente e esperto”, embora
entendesse pouco ou nada da realidade operacional da guerra, que só
havia conhecido durante a fracassada invasão da Polônia em 1920.
Aprendeu na prática e desenvolveu um método eficiente: antes de falar
com os generais sobre os próximos passos, ouvia o que oficiais de média
patente achavam da situação que tinham pela frente.
Putin
também é, indubitavelmente, esperto e inteligente. Fez na semana
passada uma jogada estratégica com efeitos negativos para a aliança
ocidental ao combinar com a Arábia Saudita que a produção de petróleo
será cortada em dois milhões de barris diários, impedindo assim o recuo
dos preços e mantendo a pressão sobre os países que armam a Ucrânia.
Mas
a explosão da ponte sobre o estreito de Kerch criou uma imagem poderosa
num momento importante em que os russos parecem enfraquecidos e
descoordenados. Circulou nas redes sociais o desenho em que se mostrava
como a ponte era inexpugnável, protegida por nada menos que vinte
sistemas de defesa, incluindo caças, aviões espiões, satélites, baterias
de mísseis, navios de guerra, mergulhadores e até golfinhos amestrados.
A
ponte já começou a ser reparada, com trânsito reduzido na pista que
ficou intacta. Mas bombas que matam mulheres, crianças e idosos não vão
restaurar facilmente o golpe moral infligido a Putin.
O
saco de maldades que tem a seu dispor é variado e profundo e mais
coisas sairão dele na reunião de emergência de hoje do Conselho de
Segurança.
Virar motivo de piada é o tipo de humilhação pela qual Putin vai cobrar caro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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