Uma das mais recentes polêmicas é que a maioria das espécies microscópicas é batizada com nomes masculinos. João Pereira Coutinho via FSP:
Desconhecia
que os parasitas que habitam o meu corpo podem ser expressões de
sexismo, nepotismo e clientelismo. Mas viver é aprender, e eu aprendo:
informa a TV Sky News que existe uma nova "polêmica de gênero" no horizonte.
Um
grupo de estudiosos, liderado pelo professor neozelandês Robert Poulin,
analisou oito revistas científicas entre 2000 e 2020. Foram descobertas
2.900 espécies microscópicas durante esse período. A esmagadora maioria
foi batizada com nomes masculinos —os nomes dos cientistas, dos seus
familiares e dos seus amigos. As mulheres estão fracamente representadas
(só 11%).
Entendo a polêmica: qualquer pessoa sensata gostaria de dar o seu nome a um verme intestinal.
E as mulheres, presumo, gostariam de poder olhar através do microscópio
e ver, sei lá, uma Maria ou uma Joana. Mas os homens, com inteligência e
ganância, já colonizaram o tubo digestivo. Só tem Manuel e João.
Para além de sexistas, os homens são pouco românticos. Haverá coisa mais bela do que dar o nome da namorada a uma lombriga ou a uma tênia? É melhor que flores ou chocolates.
O
caso será anedótico, concedo. Mas ele mostra um dos problemas das
conversas regulares sobre a "igualdade" (de gênero e não só): tudo vira
palhaçada. E a palhaçada, claro, não altera as desigualdades reais:
enquanto o mundo discute os nomes de parasitas, as injustiças permanecem
intocadas.
É
tudo pose, em suma. Ou, para usar as palavras do filósofo de
ascendência nigeriana Olúfémi O. Táíwò, hoje professor na Universidade
Georgetown, é tudo "captura das elites".
Desconhecia
Táíwò e cheguei ao seu livro, "Elite Capture: How the Powerful Took
Over Identity Politics (And Everything Else)", depois de ler a sua entrevista ao The Chronicle of Higher Education.
Recomendo a leitura —da entrevista e do livro. Táíwò tem observações luminosas sobre o grande negócio da vaidade simbólica.
"Captura
das elites" começou por ser um conceito aplicado aos grupos com
influência social que, na África e sobretudo no período pós-colonial,
passaram a controlar os recursos financeiros do país.
Resultado: essa nova elite, imitando a velha, continuou a perpetuar a exploração dos antigos colonizadores.
Acontece
que a "captura das elites" não se limita ao mundo africano que Táíwò
conhece bem. Essa captura é visível nas sociedades ocidentais e na forma
como os grupos socialmente representativos empresas, universidades,
mídia, política etc— sequestraram as questões de gênero para ganhos
próprios, que em nada modificam as desigualdades estruturais.
As
grandes empresas são o melhor exemplo: se o lucro implica uma vênia à
sensibilidade "woke", as corporações são as primeiras a sinalizar a sua
virtude, mesmo que os seus trabalhadores continuem a ser miseravelmente
pagos.
O
mesmo acontece em todos os redutos da elite: a retórica é barata e traz
lucro, material ou simbólico. Mas as relações de poder permanecem
intocadas.
Aliás,
as elites só abraçam as pautas identitárias precisamente para que as
relações de poder permaneçam intocadas. Uma das formas de o conseguirem,
argumenta Olúfémi O. Táíwò, passa pela cooptação de elementos da
minoria para que sejam figurantes no grande espectáculo da consciência social.
Essa
"política de deferência" significa apenas que as elites "passam o
microfone" a alguém que foi marginalizado pelo sistema, desde que isso
não altere o sistema.
As
consequências são inevitáveis: perde-se a ação coletiva; as decisões
essenciais ficam cada vez mais distantes das pessoas marginalizadas; e
as elites não abrem mão da sua supremacia e do seu paternalismo.
Sim,
minhas discórdias sobre o argumento geral de Olúfémi O. Táíwò são
enormes. Ao contrário dele, nunca comprei a visão dicotômica (e
marxista) de que a complexidade das relações sociais pode ser resumida a
simples relações de poder.
Nem
tudo é cosmética; a história também apresenta contrafatos de mudanças
estruturais que precisaram da participação das elites para acontecerem
—da abolição da escravatura à expansão da democracia, exemplos não
faltam.
Mas Táíwò está certo quando denuncia os excessos cênicos (e cínicos) com que muitos profissionais da virtude parasitam as causas igualitárias para obterem ganhos próprios.
Conheço vários. São aqueles que enchem a boca com a "justiça racial" ao mesmo tempo que exploram os seus empregados em casa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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