E além de aprender sobre menstruação, toda mocinha ganharia um vibrador da mamãe, que a levaria a um ginecologista para tirar o hímen e possibilitar esse importante tratamento. As lésbicas precisariam rever seus conceitos e virar adeptas da penetração. É isso mesmo? Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Foi
com espanto que li a manchete d’O Globo que dizia o seguinte:
“Vibrador: médicos devem prescrever uso regular do acessório para
mulheres, afirmam pesquisadores”. Logo abaixo, um resumo: “Os benefícios
da prática incluem melhora na saúde do assoalho pélvico e na saúde
sexual de forma geral, além de redução da dor vulvar”. Somos levados a
crer que por puras razões científicas os médicos devem prescrever
vibrador para todas as mulheres. Uma conduta científica seria levar uma
montanha de vibradores para um convento a fim de cuidar da saúde das
freiras. E além de aprender sobre menstruação, toda mocinha ganharia um
vibrador da mamãe, que a levaria a um ginecologista para tirar o hímen e
possibilitar esse importante tratamento. As lésbicas precisariam rever
seus conceitos e virar adeptas da penetração. É isso mesmo?
Vamos
ao corpo do texto: “Pesquisadores do Cedar-Sinai Medical Center, nos
Estados Unidos, afirmam que médicos deveriam prescrever o uso regular de
vibradores para suas pacientes mulheres. Em artigo publicado
recentemente na revista The Journal of Urology, a equipe concluiu que a
prática comprovadamente traz benefícios médicos, como melhora na saúde
do assoalho pélvico, redução da dor vulvar e melhorias na saúde.
Diversas pesquisas já haviam indicado os impactos positivos da
masturbação feminina frequente [ênfase minha] na saúde física e mental.
Entretanto, haviam [sic] poucas informações sobre o uso de vibradores
como auxílio à masturbação e se eles têm impactos positivos na saúde”.
Não só é isso mesmo como ainda tem o desplante de atrelar masturbação a
uso de vibrador. Se for assim, todo e qualquer benefício da masturbação
poderá ser usado como prova dos benefícios do vibrador. No caso
feminino, ainda tem mulher que não consegue se masturbar (vide a mera
existência de oficinas de siririca para feministas em universidade
pública). Assim, os problemas psicológicos da criatura que quer se
masturbar e não consegue podem ser todos interpretados como falta de
vibrador, e o bem-estar prévio das que conseguem, como efeito do
vibrador. Aí não teve jeito e fui atrás do paper, para ver se eles
tinham a cara de pau de equivaler masturbação feminina a uso de
vibrador.
O paper não diz nada disso
A
matéria d’O Globo citava Alexandra Dubinskaya como líder da pesquisa e
dava o nome do jornal. Pude então encontrar o artigo, que vocês podem
ler clicando aqui. Não há nenhuma alusão a masturbação. O título é “Is
it time for FPMRS to prescribe vibrators?” FPMRS, aprendemos no resumo,
significa “Female Pelvic Medicine and Reconstructive Surgery”, algo como
“Medicina ginecológica pélvica e cirurgia reconstrutiva”, também
chamada de uroginecologia, mas americano adora sigla. Assim, o título do
artigo pergunta se os uroginecologistas não deveriam passar a
prescrever vibradores. No resumo, lemos também que o foco da equipe são
mulheres com problemas no assoalho pélvico – o que vai desde
incontinência urinária até recuperação de uma cirurgia reconstrutiva.
Poucas
mulheres jovens e sadias têm por que procurar um uroginecologista.
Problema em assoalho pélvico costuma ser coisa de mulher que pariu
muito, gordonas e velhinhas.
A
mim me parece algo factível que vibradores tenham serventia no estímulo
de uma musculatura que precisa ser regenerada. Isso é uma descoberta
bem mais modesta do que a necessidade feminina universal de vibradores.
Pelo texto d’O Globo, parece que quem não usar vibrador vai ter dores
vaginais e incontinência urinária.
De
resto, o artigo lastima a falta de pesquisas que investiguem os
benefícios dos vibradores e computa os poucos artigos existentes sobre
vibradores, bem como os benefícios indicados por eles. Existem artigos
sobre malefícios de vibradores? Não sabemos. O que sabemos é que os
próprios benefícios são pouco conhecidos, já que todo o ponto do artigo é
que os benefícios dos vibradores são pouco estudados, e que isso é um
problema porque provavelmente eles são benéficos para mulheres com
problemas no assoalho pélvico. Cito as conclusões: “Os vibradores não
são bem estudados, e, dados os benefícios promissores demonstrados nos
artigos identificados, deveriam ser feitas mais pesquisas para
investigar a sua utilidade. Considerando-se os potenciais benefícios dos
vibradores para a saúde pélvica, sua recomendação para mulheres deve
ser incluída no nosso arsenal de tratamentos para mulheres com desordens
no assoalho pélvico”.
O que se passa no jornalismo?
Moral
da história: a recomendação do vibrador para todas as mulheres saiu da
cabecinha do jornalista, que nem assinou a matéria. D’O Globo foi para o
Extra, com a manchete “Médicos devem prescrever uso regular de
vibradores para mulheres, dizem pesquisadores americanos”; e depois para
o UOL, que anuncia: “Sentir prazer faz bem à saúde! Uso de vibradores é
recomendado por cientistas”. Ao que parece, essa abobrinha é de solo
nacional mesmo, pois não pude identificar nenhuma agência internacional
que tivesse extraído essa inferência do artigo científico. Se isso
tivesse acontecido, poderíamos incluir O Globo num telefone sem fio
internacional e explicar a manchete maluca. Mas esse não é o caso.
Como
será que isso aconteceu? Eu duvido de que a redação tenha algum leitor
assíduo de periódicos de urologia. O mais provável é que alguém tenha
posto “vibrator” no Google Alerts para ser notificado quando o termo
aparecesse em artigos científicos. Aí é só pegar o estudo e fazer um
malabarismo para promover pautas predeterminadas com um belo "diz
estudo". Resta saber o que mais não haverá nessa lista do Google Alerts…
Promoção da poligamia
Desde
o ano passado me deparo com a notícia de que um homem desafia a
monogamia porque vive com nove ou oito esposas. Varia da época da
matéria. A primeira vez que me lembro de ter visto foi ano passado.
Lembro porque ele estava se exibindo com nove caixas de pizza, e eu
finalmente consegui decifrar um refrão de pagodão que tocava aqui perto
de casa: “Pagador de pizza”. O eu lírico da música se gabava de ser um
pagador de pizzas e de ser o rei das cachorras. Mas aquele era casado,
dizia a matéria. Não era sexo casual. Depois apareceu notícia de que uma
das nove desejava um casamento monogâmico, ele se recusou e o número de
esposas baixou para oito. Estaria atrás de uma gordinha para retomar o
número. No maior jornal do meu estado, saiu semana passada que “Homem
casado com 8 mulheres tem nome tatuado no corpo delas” (mas eram só
cinco as tatuadas, segundo o corpo do texto). E agora, esta semana, a
troco de nada, o Metrópoles nos conta “Como é a agitada rotina de
influencer ‘casado’ com 8 mulheres”.
Em
momento nenhum descobrimos o que ele faz da vida; só que “as parceiras
se dividem para fazer as atividades domésticas enquanto ele assume as
responsabilidades financeiras”. Qual será o grau de estabilidade dessa
relação? Duas “esposas” sequer moram na casa. Resumindo a história da
matéria, era uma vez Arthur, nascido na Venezuela e criado na Paraíba.
Casado e pai, Arthur trai a esposa com Luana, se separa e decide ficar
com ela, contanto que numa “relação liberal”. Desde então, mantida
Luana, tem havido um rodízio de mulheres. Todas o têm como único homem e
só fazem sexo na presença dele, isto é, com ele participando ou só
olhando a interação feminina. Quanto ao grau de estabilidade… “O
relacionamento com Luana é o mais duradouro: sete anos. As demais
relações variam de nove meses a dois anos”. Ou seja, há uma mulher fixa e
as rotativas.
Que
faz da vida esse influencer além de ficar elogiando as maravilhas do
poliamor para jornais sempre interessados? Sexo. E como ele ganha
dinheiro? Com isso mesmo. Numa rápida pesquisa, descobrimos que Arthur, O
Urso, é uma estrela do OnlyFans. Esta é uma plataforma feita para
produtores de conteúdos digitais venderem o seu peixe; na prática, é um
lugar onde jovens vendem pornografia. Segundo uma matéria britânica de
2021, o casal (sim, casal) Arthur e Luana faturaria 56 mil libras por
mês no OnlyFans. Em algum momento do ano passado, o casal fogoso se
transformou em porta-estandarte do poliamor. O “divórcio” de Arthur de
uma das 9 esposas deu até no Daily Mail.
A
pergunta que não quer calar é: os jornalistas não acham relevante
informar que os envolvidos no tal casamento são atores pornôs? No mundo
islâmico, casamentos “poliamorosos” parecidos com esse existem. Mas o
leitor há de convir que um homem tradicional que se compromete com uma
série de esposas e sogros é bem diferente de um casal que ganha dinheiro
com pornografia e mantém uma rotina agitada com jovens rotativas. Ora, o
islâmico casa com donzelas e não vai mostrá-las peladas na internet. O
casamento dura e gera filhos. Não pode ser um suruba eterna; há mulheres
amamentando e crianças correndo pela casa. Não tem nada a ver com
performance de atores pornôs.
Propaganda?
Dado
o dinheiro que o OnlyFans movimenta, é o caso de nos perguntarmos se
ele não investe em publicidade. Investindo, é o caso de nos perguntarmos
se jornais tradicionais teriam coragem de colocar o OnlyFans como
patrocinador, ou se fariam a publicidade com mais discrição, na forma de
matérias jornalísticas. Este seria um jeito de explicar por que tantos
jornais falam da vida do ator pornô omitindo o fato de que é um ator
pornô. Se for esse o caso, devemos nos perguntar se boa parte da
promoção de "desconstrução" da normalidade não corre o risco de ser
publicidade velada de Big Techs da pornografia.
Voltemos
ao artigo científico que inspirou O Globo. Ele toca num assunto muito
importante, que é o foco das pesquisas: não há estudos sobre tudo, e
algumas coisas mereciam ser mais estudadas do que outras. Uma delas, ao
meu ver, é o impacto que o mercado erótico digital tem sobre a
juventude.
Uma
amiga minha, estudante de medicina no Sudeste, passou um tempo
atendendo em ambulatório de infectologia. Segundo ela, há um perfil
muito específico de novos casos de Aids: a mocinha de classe média
tradicional chega no ambulatório acompanhada pelos pais, com o pescoço
todo enrolado para tapar as ínguas que o HIV causa. Confirmado o
diagnóstico, o protocolo é “temos que avisar ao seu namorado”. Eis que
não há namorado. As mocinhas enrolam consulta após consulta para
explicar por que o namorado não veio, até a estudante de medicina pedir
para falar a sós com a paciente. No mais das vezes elas admitiam que não
havia namorado nenhum. Elas faziam programas e compravam artigos de
luxo. Os pais não faziam ideia de nada, porque prostituta, para eles, é
fácil de reconhecer. Não fazem ideia de que menina de apartamento que
passa o dia trancada na internet pode estar se anunciando como
prostituta – e há toda uma propaganda que ensina a chamar urubu de meu
louro, isto é, prostituta de sugar baby e quejandos. Essa amiga mesma
tem colegas de faculdade que se orgulham de ter um OnlyFans.
Supostamente é empoderador vender suas fotos pelada na internet.
Eis
aí algo digno de ser estudado por cientistas sociais e investigado por
jornalistas. Por esse tipo de coisa se vê que ciência social e
jornalismo são importantes. Importantes demais para estarem do jeito que
estão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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